Edição 10 | e-2404 | Entrevista | com o Pr. Sinvaldo Queiroz | Por Mônica Carvalho

A Igreja e a Cidade

Introdução

O ministério de Jesus foi marcado pela pregação do Evangelho, com manifestação de sinais de cidade em cidade: “Jesus ia passando por todas as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas, pregando as boas novas do Reino e curando as enfermidades e doenças” (Mt 9.35).

Recebemos na FTSA, para uma conversa, o pastor Sinvaldo Queiroz. Psicólogo, pastor da Igreja Batista da Cidade, em Vitória da Conquista (BA), graduando no Mestrado Profissional em Teologia da FTSA. E, podemos dizer, um missionário integral, trabalhando na Casa da Vida, um projeto que acolhe pacientes e suas famílias em hospitais da sua cidade. Pr. Sinvaldo fala do seu testemunho de vida, do seu projeto em missão e reflete sobre a ação da Igreja nas cidades

Pergunta – Pastor, é uma alegria ter você conosco e obrigada por sua disponibilidade em compartilhar a sua experiência, o seu chamado. Fale sobre você, de como iniciou a sua vida com Cristo, sua chamada pelo nosso Senhor?

É uma alegria estar aqui, podendo dividir um pouquinho a história da vocação e também das repercussões de tudo que a FTSA tem gerado dentro de mim, na minha jornada pastoral. Eu sou o filho caçula de Seu Sinvaldo e Dona Marina. O meu pai faleceu de um infarto fulminante, aos 36 anos de idade, e eu fiquei órfão de pai com seis para sete anos. Eu passei a vida toda à procura de um pai. Minha mãe é viúva até hoje. Ela tem 69 anos de idade. Mas, aos 12 anos, eu precisei cuidar da minha avó materna, que havia sofrido um acidente e não tinha ninguém para cuidar dela naquele momento. Ela professava a fé cristã, era membro de uma igreja evangélica e, pelo fato de ter sofrido o acidente, eu a assessorava no vestir das roupas e a levava para a igreja. Ela me chamava por um apelido. Tendo em vista que meu nome é o mesmo nome do meu pai, ela dizia assim: “Juninho entra para o culto!”. Eu era um menino peralta. comecei a namorar precocemente, então eu não ficava para o culto. E ela me dizia: “Deus vai fazer de você um pastor, tendo em vista que você nunca quer estar no culto comigo”. E a palavra da minha avó foi uma espécie de profecia. Naquela convivência, eu tive os primeiros contatos com o Evangelho, com o amor de Deus, com a graça de Deus, através da minha avó.
Comecei a trabalhar muito cedo e fui trabalhar com meu tio, irmão da minha mãe. E ele também imprimiu as marcas do amor de Deus no meu coração, na minha vida. E o menino órfão de pai, agora vê revelada a face do Deus e Pai de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, que se apresentou como Pai nosso e acolheu meu coração. E assim começa a minha caminhada cristã. Mas, somente aos 17 anos de idade é que acontece de fato e de verdade, uma experiência de conversão de novo nascimento. Ao visitar uma igreja batista, com o desejo de agradecer a Deus pelo fato de ter passado na primeira etapa de um vestibular na Universidade Federal, ao ouvir o Evangelho, ao ouvir aquele apelo e aquela chamada ao seguimento de Jesus, eu estava em prantos. E ao me render ao amor de Deus, ao estar à frente, recebendo aquela oração, o meu coração foi aquecido por uma vocação que a princípio não entendia. Eu sabia que precisava viver e fazer alguma coisa para Deus no ato daquela decisão de seguir Jesus. No decorrer do tempo, isso foi aflorando e a consciência de que havia uma vocação pastoral se tornou algo muito grande dentro de mim. E então, aos 19 anos, eu já trabalhava em tempo integral na igreja, começava o seminário e assim começava a história de um menino órfão, acolhido pelo amor de Deus Pai e que agora tem uma vocação no Reino de Deus de anunciar esse amor desse Pai maravilhoso.

Pergunta – Então, desde que você se tornou pastor até agora, quanto tempo nessa caminhada?

De trabalho integral no ministério? Já se vão 20 anos trabalhando numa comunidade de fé, de ordenação ao ministério pastoral, 13 para 14 anos.

Pergunta – Você estava me dizendo que fundou a igreja na qual é pastor. Conta para a gente como isso aconteceu?

A Batista da Cidade, em Vitória da Conquista, é um projeto de plantação de igreja em que amigos e familiares se reuniram com o desejo de viver uma experiência de fé comunitária que não se resumisse a uma instituição com uma finalidade em si mesma. Partindo das palavras do Dietrich Bonhoeffer, a igreja só é igreja para aqueles que não pertencem a ela. A Igreja só é a Igreja quando o é para os de fora. Então, a partir dessas provocações, a partir das literaturas que eu recebia de um amigo querido, o Ivan Cordeiro, que estudou aqui nesta seara (na FTSA) … Toda vez que ele ia a Bahia, levava os livros do Jorge, do Antonio, que traziam as perspectivas da missão integral. E isso foi inflamando o nosso coração com uma nova compreensão do Evangelho, o que fez nascer a Igreja Batista da Cidade, numa reunião na garagem da minha casa, um grupo pequenino de pessoas ávidas por viver uma experiência comunitária missional. Então, é aí que começa a nossa história. A gente completa 10 anos no dia 4 de agosto de 2023. É uma história marcada por um senso de comunidade que não existe para si mesma e que tem vivido uma série de aventuras no Reino de Deus. Dentre elas, a mais cativante, a mais apaixonante é a Casa da Vida, que é essa casa que acolhe acompanhantes de pacientes internados no Hospital Geral de Vitória da Conquista, que atende uma população flutuante de 2 milhões de habitantes. Norte de Minas Gerais, sudoeste baiano… Com tratamento de traumas, cirurgias etc. Toda essa população vai para Vitória da Conquista e recebe um acompanhamento médico hospitalar. No entanto, os acompanhantes não têm onde ficar e não recebem o cuidado que eles tanto precisam, tendo em vista que eles são aqueles que cuidam de quem está internado. Então, a Casa da Vida é uma das nossas aventuras mais inspiradoras.

Pergunta – E como funciona? Qualquer pessoa pode chegar lá e ser acolhida ou precisa fazer um cadastro? Como funciona para ser recebido na Casa da Vida?

O interessante é que a gente começa com um trabalho de capelania hospitalar. A gente visita o hospital uma vez por semana. E a gente se depara com histórias de pessoas que tinham seu familiar na UTI e dormiam na rua, pois, no outro dia fariam de novo a visita e não poderiam voltar à sua cidade de origem porque precisavam acompanhar o seu ente querido.

Então, quando a gente se deparou com essa cena, começamos a dividir isso com a igreja e a sonhar com uma casa próxima ao hospital que pudesse acolher essas pessoas. Um membro da igreja tinha uma casa na calçada do hospital e eu dividi isso com ele. Ele ficou encantado e disse: “Eu vou ceder a casa para o trabalho”.

No entanto, ele sofria de uma depressão velada, não compartilhada, e já convivia com ideações suicidas há muito tempo. Até que eu recebi uma ligação do pastor Silas, que trabalha junto comigo, dizendo: “o nosso irmão Vicente tirou a própria vida”. A história da Casa da Vida começa com uma tragédia, com um suicídio nessa casa que hoje é a Casa da Vida. Eu cheguei na casa 20 minutos depois da tragédia e isso foi uma dor grande, pois, ele sempre foi um amigo muito querido.

Hoje, a secretária da Casa é a filha dele. Em alguns momentos, a gente viu a filha caçula e a viúva também servindo como voluntárias. Então, a Casa da Vida começa com uma história de morte. Eu costumo dizer, inclusive está na minha dissertação de mestrado, que o Evangelho tem a capacidade de ressignificar os contextos urbanos, palco de tragédias, de redimir geografias e de sinalizar a esperança onde a morte deu os seus sinais. A casa da vida começa a partir desse lugar. Depois dessa tragédia, a família não quis mais estar ali. Eu tenho autorização da família para compartilhar tudo isso. Comecei a levar as pessoas na Casa, contar do sonho e as pessoas diziam “eu ajudo”, “eu ajudo”, “eu ajudo”. Até que alugamos a casa e iniciamos o projeto em maio de 2017.

Isso me chama muito a atenção, porque nós éramos uma comunidade muito pequenina, com quatro anos de fundação, sem recursos financeiros para tal tarefa. No entanto, eu aprendi que a missão precede a provisão. Primeiro, a gente começa a missão porque Deus está em missão. E o Deus que está em missão traz toda a provisão.

Pergunta – E qual é a metodologia de trabalho?

Uma parceria com o hospital que, a partir do seu serviço social, identificava acompanhantes que não tinham onde ficar, sinalizavam pra gente e entregavam um papel de requisição para esse acompanhante. Ele nem precisava atravessar a rua. Caminhando pela calçada, chega na Casa onde é acolhido, tem onde dormir, tomar um banho, lavar as suas roupas. Tem apoio pastoral, psicológico, todas as refeições sem pagar nada.
Chegamos ao ponto de termos pessoas por oito meses morando com a gente, sem ter nenhum custo, recebendo todo o amparo e acolhimento. Tem um membro da nossa igreja, chamado Willian dos Anjos, músico e poeta. Ele costuma dizer na Casa da Vida que “Jesus se apresenta primeiro como o travesseiro aconchegante e limpinho, como um cobertor que aquece no frio de Vitória da Conquista”, afinal embora seja Bahia, está 1.000 metros acima do nível do mar e é chamada de Suíça baiana. Willian também diz que “Jesus se apresenta no caldo quente de frango que aquece não apenas o estômago faminto, mas o coração que precisa de alento”. É assim a nossa Casa da Vida, o xodó da nossa comunidade. São 5.000 pessoas atendidas em seis anos, 23 estados do nosso país, mais de 300 municípios. Um sinal de esperança numa cidade que atende toda uma região circunvizinha. Muitos dizem isso, que quando aquela porta se abriu, a sensação é que uma porta de esperança havia sido aberta diante dos seus olhos.

Pergunta – Ouvindo isso, já me apaixonei pela poesia. E me faz pensar claramente no Senhor Jesus, que é o modelo para nós, que tinha uma preocupação não apenas com a renovação espiritual das pessoas, mas Ele também provia o pão. Ele proveu dignidade. Quando Ele curou, por exemplo, um cego, uma viúva, ele restaurou toda uma situação econômica e social dessa família. Eu acho que o mais bonito disso tudo que você está nos contando, é perceber que a igreja está entendendo isso e está fazendo essa diferença. Nessa parceria com o hospital, a sua igreja abraçou isso. Então, é um grande marco comemorar os dez anos com esse projeto também. Vocês estão planejando uma festa?

São dez anos como igreja, e a gente acabou de completar seis anos como Casa da Vida. Interessante é que ao recebermos pessoas que visitam a Casa da Vida, que ouvem essas histórias, elas naturalmente se emocionam e dizem assim: “Ah, é um sonho da nossa igreja ter um projeto assim, mas a gente ainda não tem condições”.

Isso me chama muito a atenção, porque nós éramos uma comunidade muito pequenina, com quatro anos de fundação, sem recursos financeiros para tal tarefa. No entanto, eu aprendi que a missão precede a provisão. Primeiro, a gente começa a missão porque Deus está em missão. E o Deus que está em missão traz toda a provisão. Para fazer valer as palavras do missionário Hudson Taylor – “A obra de Deus feita do jeito de Deus, jamais terá falta dos recursos de Deus”.

Por isso, a gente sempre celebra esses momentos de aniversário relembrando essas histórias, dando voz aos nossos hóspedes. Toda segunda-feira, nós temos uma ciranda da vida, onde eles contam como chegaram, em que pé anda o tratamento do seu ente querido e como é que a graça de Deus tem acolhido o coração deles. É extraordinário perceber uma mãe que ora pelo filho que sofreu um acidente de moto, por exemplo.  Por conta de, no interior, a lei daqueles municípios não obrigarem a usar capacete, ele fica com traumatismo craniano. Geralmente, esse é o maior número de pessoas atendidas naquele hospital e que tem os seus hóspedes na Casa.

Mas, essa mãe recebe o consolo de outra mãe que acabou de ter um bebê e o seu bebê está na UTI neonatal. Duas mães em momentos diferentes da maternidade, orando a Deus pela saúde dos filhos. O que é mágico, é perceber elas se consolando, elas se abraçando. A maneira de celebrarmos esses aniversários é ter de novo contato com essas histórias. E ao trazer à memória essas histórias, somos batizados por uma esperança que nos coloca de novo no chão da missão.

Uma consciência que, antes de pensar no crescimento numérico da Igreja, faz uma outra pergunta: como é que a Igreja que, nós já somos e existimos, pode servir à comunidade que nos cerca? Quais são os gritos do ambiente urbano que estão diante de nós e que demanda uma resposta? Eu sempre repito: quando alguém grita por socorro, Deus responde com um chamado.

Pergunta – Imagino que tenha líderes lendo ou ouvindo esse nosso bate papo; pastores se perguntando “como é que ele conseguiu convencer a igreja, como é que ele conseguiu criar um trabalho tão grandioso como esse?” A partir da igreja, o projeto é uma extensão hoje, um braço da igreja. Então, o que você diria para esse pastor, para esse líder, encorajando-o a não desistir de um projeto social, de um projeto de missão integral. Nós temos muitos alunos que entenderam que o Evangelho todo é para o ser humano todo, e estão tentando colocar essa teologia na prática. Que dicas, que conselho você daria para encorajar essas pessoas?

Eu começo lembrando que, melhor do que contar com Deus é ser por Ele contado. Isso dá sentido para a vida, para acordar de manhã e, mais do que se lembrar de que eu posso contar com Deus, me lembrar que Ele está contando comigo. Eu costumo dizer que a vocação é o senso de missão. Costumo emprestar sentido para a vida e as pessoas em nossas comunidades também estão buscando o sentido para a vida.
O meu convite aos colegas pastores, estudantes de teologia é o convite para uma leitura, com a Igreja, do Evangelho escrito por Lucas e o livro de Atos dos Apóstolos, também escrito por Lucas. Porque isso é muito interessante: se em Lucas a gente percebe Jesus fazendo, em Atos agora a tarefa é nossa. O livro de Atos começa dizendo que Lucas registra tudo o que Jesus estava fazendo e ensinando.
Ou seja, o Evangelho não é apenas um anúncio. O Evangelho é a manifestação do Reino que chegou fazendo valer as palavras de Dom Robson Cavalcanti – “que a Igreja tem a tarefa de manifestar com a maior densidade possível, aqui e agora, o Reino de Deus, que será consumado ali e além”. O Evangelho não é uma mensagem que afeta apenas mentes e consciências. O Evangelho é uma realidade, uma manifestação do Reino que chegou e afeta toda a dimensão da criação e toda a completude da humanidade.
Então, quando a Igreja entende que a missão de Deus não é levar pessoas para o céu, mas é trazer o céu para a terra – “venha o teu Reino, seja feita a tua vontade”, as coisas mudam. Seria a vontade de Deus que acompanhantes de pacientes ficassem dormindo na rua? Não. Então, qual é a tarefa da igreja? É trazer o céu para o aqui e agora. O que é o céu para o aqui e agora? É que essas pessoas tenham a dignidade de enquanto cuidam também sejam cuidadas. Então, isso perpassa por uma transformação da consciência bíblico-teológica. Uma consciência que, antes de pensar no crescimento numérico da Igreja, faz uma outra pergunta: como é que a Igreja que, nós já somos e existimos, pode servir à comunidade que nos cerca? Quais são os gritos do ambiente urbano que estão diante de nós e que demanda uma resposta? Eu sempre repito: quando alguém grita por socorro, Deus responde com um chamado. Quais são os gritos que Deus está ouvindo? E de que maneira Ele está nos chamando no contexto no qual nós estamos inseridos?

Pergunta – É aí que entra um pouquinho da sua tese do mestrado, da mensagem que você vem trazendo, inclusive em culto aqui na FTSA, sobre a atuação da igreja na cidade. Como é que você aborda essas questões da igreja ser relevante, fazer diferença na cidade, além do que você já falou? Obviamente que é trazer o céu para a terra, mas na prática, como é que você vem colocando isso na sua igreja e na sua tese?

Dois textos marcam a nossa comunidade de fé e também a minha pesquisa do mestrado. Pensar no que João diz na sua primeira carta, capítulo dois, verso seis. Diz que, aquele que afirma estar nele deve andar como ele andou. A pergunta é: como foi que ele andou? Aí Lucas vai explicar para a gente em Atos 10 versículo 38 – “ele andou por toda a parte, fazendo o bem”. Qual é a agenda da igreja? Andar como ele andou? Ele andou fazendo o bem!

De cidade em cidade, aldeias…

Por onde passava… Diante de cada clamor, uma resposta. E essa resposta é a grande mensagem: o Reino de Deus chegou! Porque no Reino de Deus, à medida que nós anunciamos e manifestamos o Evangelho, as realidades são transformadas. Então eu penso, e trabalho isso no texto, é que a gente precisa redescobrir o que é o Evangelho e, como é que essa redescoberta do Evangelho nos leva para o cumprimento da integralidade da missão e não apenas uma ideia de que estamos aqui para salvar almas. A gente brinca de que este seria um ministério “Gasparzinho”, salvar almas. Não, nós amamos seres humanos e, o ser humano está para além da sua espiritualidade. A espiritualidade é um dos aspectos da nossa ser-humanidade. Então, a missão precisa ser completa. A gente pensa também que o Evangelho relê os desafios do contexto urbano e oferece uma resposta. E no meu texto, eu trabalho que a Casa da Vida é um reflexo de como a igreja pode intervir.

Mas, tudo, não começa com a Casa da Vida. No primeiro ano da igreja, nós decidimos que os Natais não seriam comemorados apenas para a gente. Existem pessoas que precisam ouvir a notícia do Natal, como os pastores que trabalhavam nos campos, como Ana e Simeão que precisavam ouvir acerca do Natal, ou seja, nós queremos ser uma igreja para quem não está na igreja, não gosta da igreja e não frequenta este ambiente.

Uma igreja para fora da igreja…

Uma igreja para fora da igreja, para fora dos portões, para fora do acampamento. Para você ter uma ideia, a gente fez um Natal para garotas de programa, prostitutas. A nossa cidade está no eixo considerado como cinturão da prostituição infantil do nosso país. E a caminho da comunidade, a caminho do bairro onde a igreja está, nós atravessamos a BR-116 onde as pessoas se prostituem. Para resumir a história, nós pregamos sobre a prostituta na Bíblia e o amor de Deus por estas pessoas que estão à margem, que estão segregadas. Nós convidamos homens casados, com dinheiro do caixa da igreja, a irem aos bordéis, aos locais de prostituição, entre aspas “contratar” estas mulheres para um programa. Elas só não sabiam que era para um programa de Natal. Nós as levamos para o espaço da igreja, que até hoje não tem placa, e preparamos uma festa daquelas. Lá, as esposas desses homens, com presentes, com bufê preparado… E nós apresentamos a mensagem do Natal. As esposas iam até às mesas, com os presentes e perguntavam: “Meu marido te tratou como a filha amada de Deus?’; “Você está se sentindo acolhida pelo amor de Deus?”. E aí você imagina o choro. Elas estavam de máscaras, como num baile à fantasia, para proteger a imagem, mas, elas não resistiram e tiraram as máscaras. Era choro desses homens, das nossas esposas, e dessas mulheres amadas por Deus. Depois, colocamos à disposição uma gama de serviços, como médicos, atendimento psicológico, cursinho pré-vestibular, que a igreja oferecia. Demos também a oportunidade para que elas pudessem dizer como foi a noite, então uma senhora de 70 anos, dona de um prostíbulo, disse: “foi o melhor Natal da minha vida”. Uma outra disse: “Quero saber como vocês vão nos devolver aos lugares onde nos encontraram porque essa noite ficou marcada na nossa vida”. Nossa igreja estava num shopping ao lado da igreja, mais de 200 pessoas esperando na praça de alimentação, querendo saber o que estava acontecendo. Então, pedimos autorização a elas: “Nossa igreja pode entrar para dar um abraço?”. E toda a igreja entrou.

Até que eu olho e meu filho que tinha de três para quatro anos, o João Pedro com a máscara do Batman, porque ele ouviu dizer que era festa a fantasia, está passando de colo em colo das nossas convidadas, garotas de programa. E a emoção tomou conta do meu coração. E eu falei: Meu Deus, meu filho! E no meu coração uma voz dizia:” está emocionado com o seu filho no colo delas. Lembra do que eu fiz com o meu, para que elas pudessem ser amadas e serem reconciliadas com o meu amor?” Então, no primeiro ano da igreja, nós estávamos tentando amar aquelas que a igreja geralmente não ama e as invisibiliza. Elas não são vistas. E é daí que nasce uma consciência missional de que Deus nos chamou para amar aqueles que geralmente, não amamos.

Então assim, trocando em miúdos: como levar a minha igreja a se engajar na missão integral? Proporcionando experiências da missão de Deus no mundo? Ler a Bíblia e perguntar o que é que o Senhor está fazendo no mundo? Eu estou reconciliando Maria Madalena. Eu estou libertando o endemoninhado da cidade de Gadara. Eu estou devolvendo a vista para Bartimeu. Eu estou perdoando Zaqueu.  Aí a gente pergunta pra igreja e aqui, no nosso contexto, quais são as vozes e os clamores que nós estamos ouvindo? E como é que podemos responder? É ofertar para a comunidade essas experiências. Assim nasce, na minha concepção, uma cosmovisão missiologia integral da Igreja.

Eu estou emocionada e encantada porque ouvindo você, quase que me transportei para aquele lugar…

Pergunta – Nós estamos vivendo um tempo de muitas carências. A pandemia parece que potencializou nossos problemas emocionais, as nossas dores, as nossas dificuldades, enfermidades da alma. E você, além de pastor, de vivenciar esse amor todo de Jesus… Como psicólogo… Como é que você lida no seu dia a dia com essas pessoas carentes? Elas não estão precisando de um atendimento médico, elas estão precisando de um atendimento do coração. Como é que você administra isso? A psicologia e o pastorado?

É interessante pensar que o desafio pastoral, nesse tempo, é cuidar também desta dimensão psicoemocional. As pessoas vão às nossas comunidades buscando senso de pertencimento, sentido para a vida, elaboração dos seus traumas e dilemas de uma vida. E a gente precisa, mais do que um pastor que consiga andar nesses caminhos, a gente precisa desenvolver na comunidade esse senso pastoral e essa capacidade de olhar o ser humano para além daquilo que ele consegue mostrar, para além daquilo que está tangível, palpável. A gente precisa de um olhar mais profundo. E Jesus mostra muito isso. Quando Jesus cura alguém no seu físico, mas está totalmente preocupado em reconciliar aquela pessoa com ela mesma. Ele cura um leproso e diz “Vá se apresentar ao sacerdote” para que você tenha um encontro com você mesmo e se dê conta do que o amor de Deus fez com você. Ele cura a mulher do fluxo de sangue. Ele poderia deixar ela passar desapercebida, mas Ele diz “Quem me tocou?” E os discípulos dizem “Mas todo mundo te toca”. Não, “Mas tem alguém que me tocou e que precisa ser agora tocada”, com a possibilidade de ter a sua interioridade, a sua psique também afetada pela graça de Deus.

No contexto local, a gente iniciou um serviço de psicologia a partir da igreja. Eu sou psicólogo, tem um monte de psicólogos na igreja, nós montamos um serviço de psicologia. As pessoas agendavam através da secretaria da igreja e recebiam esse tipo de suporte. Na Casa da Vida tivemos, durante bastante tempo, além de um serviço de psicologia na casa, um psiquiatra servindo, acolhendo e atendendo: voluntários da casa, funcionários, hóspedes e membros da igreja que precisavam desse suporte.

Essa Casa da Vida deixou de ser uma casa só para hóspedes e passou a ser essa casa que vai acolhendo essas necessidades que vão emergindo diante de nós. Eu penso que as nossas comunidades precisam ser um ambiente também de saúde psíquica, de sensibilidade para com esse ser humano que não é apenas corporeidade e não é apenas espiritualidade, mas é também mentalidade, dimensão tão adoecida nesse tempo e ainda mais afetada no período pós-pandemia.

Uma comunidade cuidadora, terapêutica…

O pastor Ricardo Agreste diz que nós vivemos uma depressão social. E há estudiosos que dizem que a gente já não vive mais com pessoas tendo transtorno de ansiedade, a gente vive num mundo ansioso. O Brasil é o país campeão de pessoas com transtorno de ansiedade no mundo. São Paulo, dentre as cidades pesquisadas, é a cidade com maior número de pessoas com ansiedade. Saúde mental é um dos temas que estão diante de nós e que a gente precisa de uma pastoral, que acolha essa dimensão da vida humana e responda a isso com comunidades terapêuticas, cheias de amor. Que possam tratar este tema, não apenas no âmbito da mística, da transcendência ou da espiritualização, mas, tratar esse tema com a importância que ele exige. Deus nos ajude nessa tarefa.

Eu queria que você terminasse, considerando além dessa parte da saúde mental – você está falando da ansiedade- as questões ligadas ao agora: consumismo, tecnologia. Com o advento do online, parece que as pessoas deixaram de ter esse valor quanto à igreja. A igreja onde se congrega, onde nos colocamos juntos como corpo, como família da fé. Eu creio que é mais um desafio do ministério pastoral, trazer as pessoas para o ambiente de culto. Como é que você vê essa questão? Ainda há possibilidade de nós termos a igreja como esse local de encontro, de adoração, de culto e de cuidado?

Interessante, Mônica, que quando a gente abre a primeira página da Bíblia, Deus está plantando um jardim, mas esse homem se desconecta com Deus e ele agora quer construir cidades. E a cidade é uma construção humana. No jardim se ouve a voz de Deus, na cidade se ouve a voz humana. O jardim é obra das mãos de Deus. A cidade é uma construção nossa. E na cidade nós enxergamos o outro como nosso rival. E eu preciso me proteger do outro. No jardim nós estamos em comunhão; nós estamos despidos da ideia de que o outro pode me fazer o mal, porque nós somos irmãos, somos obra das mãos de Deus. Aí a sensação que a gente tem ao olhar para a tecnologia, para o online, de que isso não é coisa de Deus, isso é coisa do homem. E a gente quer demonizar isso e criar uma narrativa de retorno a uma vida rural. Impossível. O que é legal na Bíblia é que, na última página da Bíblia nós agora temos um novo mundo.

Uma nova cidade…

A sensação que eu tenho é que Deus não considera as nossas construções, mas Ele age em meio a todas as coisas conforme Romanos 8:28, para o bem. Deus está plantando um jardim na cidade. Traduzindo isso numa práxis pastoral: Como é que a gente pode construir jardins num ambiente online? Como é que a gente pode promover encontros e afetos nesse mundo urbano? Como é que a gente pode sinalizar a presença de Deus num ambiente onde as pessoas não querem ouvi-lo? Me parece que essa é a grande tarefa pastoral desse tempo.

O que me ocorre é que construir comunidades que valorizem o encontro, que valorizem a possibilidade de chamar as pessoas pelo nome; que fique claro para as pessoas que elas estão ali para serem cuidadas e não sacrificadas; de que nós não estamos construindo uma estrutura muito menos uma instituição religiosa, para que elas sejam poder político no mundo, mas nós estamos construindo rede de apoio, de afeto, de cuidado, onde as pessoas têm nome e cada nome tem uma história. Esse é o ambiente que a gente encontra em Atos capítulo 2, em que o próprio mundo em volta diz “Nós somos atraídos por esse jeito de viver”; “Que amor é esse capaz de cuidar até dos inimigos”; “Que comunidade é essa onde não há necessitados entre eles”. Ou seja, a igreja em Atos dos apóstolos, que vive um avivamento, ela pratica o que Deus sonhou desde Deuteronômio – que não haja pobre entre vocês. Não há pobres na igreja de Atos porque quem tem dá um pouco do que tem, para que quem não tem tenha pelo menos um pouco. A igreja de Atos é uma antecipação desse futuro apocalíptico, escatológico. A igreja em Atos, dá uma sensação de que esses irmãos não subiram para o céu, o céu desceu e eles já vivem os primeiros frutos desse Reino de Deus.

Então, eu penso que a igreja para esse tempo, é a comunidade que consegue cumprir uma agenda do que Deus sonhou e antecipar esses frutos do Reino de Deus que serão consumados no além. Como a gente pode viver isso agora? De maneira prática, eu fico me perguntando: se nesse novo céu e nova terra, Deus enxuga dos olhos toda lágrima, quais são as pessoas que estão chorando entre nós? Nós queremos começar enxugando agora. Se nesta nova terra, as ruas são de ouro e de cristal, que tal a gente colocar o amor ao dinheiro debaixo dos nossos pés. Se nesta cidade tem um rio que é cura para todas as nações, que tal a gente favorecer nos nossos espaços a possibilidade de ser alento para quem adoecer. Essa é uma comunidade atraente. Essa é uma comunidade que vai ter as pessoas deixando o celular no off-line porque elas querem abraços, que geram ocitocina, que geram senso de pertencimento, que geram alegria.

E eu termino com Atos 8:8, quando o Evangelho chega em uma das cidades samaritanas, o texto diz que houve uma grande alegria na cidade. Uma comunidade que vive o Evangelho na sua essência é uma explosão de alegria. CS. Lewis diz que a alegria vivenciada na missão do Reino de Deus não é encontrada em nenhuma outra possibilidade da vida humana. Que as nossas comunidades sejam batizadas pela alegria do Evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.

Que assim seja! Para terminarmos… porque a conversa está muito boa e eu ficaria um bom tempo ainda, com certeza, te ouvindo.

Pergunta – A FTSA está completando 30 anos e eu gostaria de saber como a FTSA impactou o seu ministério? Que mensagem deixaria nesses 30 anos de história?

Eu aprendi com um amigo que só há duas formas de a gente responder à graça de Deus: gratidão e generosidade. A FTSA, para mim, é um sinônimo do cuidado da graça de Deus. Eu era um jovem saindo da adolescência, começando o seminário e a FTSA já fazia parte da minha vida, quando o meu amigo levava cada uma das publicações da FTSA como um presente. E ter um contato com essa perspectiva teológica, com essa concepção da Missio Dei, com um engajamento na missão de Deus no mundo, foi uma chave na minha vida, que mudou radicalmente a minha vida cristã e a minha vocação pastoral. Então, primeiro, gratidão a Deus por ter colocado FTSA no mundo e ela ter afetado a minha vida. E segundo a generosidade, de tentar convidar tantos quantos nos ouvem para de algum modo serem também tocados por aquilo que Deus entregou a essa instituição. Eu me sinto um privilegiado, ao mesmo tempo que me sinto com uma responsabilidade grande nos ombros de reverberar toda a graça de Deus recebida através dessa instituição. Então, parabéns pelos 30 anos da FTSA. Eu aprendi com o meu amigo Carlos Queiroz que parabéns é para o bem, assim que a FTSA continue sendo uma instituição para o bem.

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Entrevistado: Pr. Sinvaldo Queiroz é Teólogo, psicólogo, pastor na Igreja Batista da Cidade e idealizador da Casa da Vida em Vitória da Conquista, Bahia. Casado com Tattiany Queiroz, pai de João Pedro e Lucas.

Entrevistadora: Mônica Carvalho Costa é jornalista e pastora da Igreja Presbiteriana Independente, graduada e pós-graduada em Teologia pela FTSA. Contato: monica@ftsa.edu.br