Tons de uma Eclesiologia Fragilizada | Por André Borges / Éder Calado / Cezar Flora / Valderly Arguelis

Tons de uma realidade pandêmica

A consideração do prefixo pós como “garantia” ou expectativa de superação da Covid-19 é algo que ainda merece apuração e questionamento. A necessidade de um termo que permita ares de superação ainda aparece como maquiagem. Todavia, ajusta tons de esperança e alívio. De fato, com a pandemia, não é fácil experienciar a vivência aliciada por ritmos e configurações sociais e existenciais, as quais outrora não faziam parte da cotidianidade, ou seja, o isolamento, os afazeres do home office, as restrições culturais e comerciais calharam como ordenanças coletivas que destoaram a rotina. Entretanto, foram solicitadas em prol da segurança e da saúde em geral.

Assim, o desejo de ultrapassar essa estação viral, a qual ocasionou dissonância nos passos, nos planos e nos projetos, é algo de cunho social, e não mera convergência individualista. Boa parte da população, menos os negacionistas, aspiram por um ar de superação. Não resta dúvidas de que a vida enviesada pela realidade pandêmica foi vastamente afetada. O medo, a depressão, a ansiedade, o pavor da morte, o tédio, entre outros sintomas emocionais e físicos foram potencializados. Nesse sentido, cabe ajuizar que o vírus desnorteou a noção de tempo, de espaço, e de relações costumadas que pessoas obtinham com o mundo. A nova ambientação causada pela Covid-19 provocou redução de abraços, de toques, ou seja, maior acuamento dos corpos em relação aos ambientes.

No entanto, vale pontuar de modo claro que acurados fatos não bancam parte de um tempo “pós” pandêmico, pelo contrário, vários acontecimentos problemáticos, e doentios já estavam arraigados na realidade social e, com o vírus, auferiram descomedida notoriedade midiática. Desse modo, a pandemia passou a exigir sensata revisão existencial, social, econômica e política. O momento viral afetou o mundo como um todo e alertou certa urgência diante da superficialização das ideações que se desdobram em prol do ser humano. Ficou fácil vislumbrar que os supostos valores de formação ética e moral, como a solidariedade, a empatia e o respeito, apareceram nessa pandemia como valores velados e decadentes. Além disso, foi perceptível que, para muitos na sociedade atual, a lucratividade é ponto mais atraente do que o zelo pela vida.

No que pulsa a realidade brasileira, a Covid-19 agenciou maior notoriedade das desigualdades sociais, da escassez de políticas públicas, da vulnerabilidade sanitária e do atraso educacional diante a vertente tecnológica. Infelizmente, a fome[1], a falta de moradia e o desprezo pela dignidade humana são dificuldades ancestrais que ainda tonificam a realidade brasileira.

Complementando o abordado até aqui, abaixo segue o fragmento que a rede brasileira de pesquisa em soberania e segurança alimentar (Rede PENSSAN) apresentou do II inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil (II VISIGAN):

O II VIGISAN, conduzido no final de 2020 pela Rede PENSSAN e parceiros, revelou que 55,2% dos domicílios brasileiros estavam em condições de Insegurança Alimentar (IA) e 9,0% conviviam com a fome. Mais do que efeitos da crise sanitária da Covid-19, tais restrições de acesso à alimentação expunham um quadro preocupante de deterioração socioeconômica e profundas desigualdades na sociedade brasileira, anterior à pandemia e agravado por ela. Esse quadro persistiu em 2021, com desemprego elevado, precarização do trabalho, perda de direitos sociais e queda do poder aquisitivo – enquanto a Covid-19 seguia ceifando vidas às centenas de milhares, num ritmo aterrorizante, chegando a mais de 660 mil mortes em abril de 2022 – fatos que revelaram para a sociedade brasileira uma autoimagem desconcertante, expressa em mazelas que se agravam e se renovam. Nesse sentido, níveis alarmantes de IA e de fome integram o contexto de crises que seguem vulnerabilizando um crescente contingente populacional, agora incorporando segmentos das camadas médias antes socialmente mais protegidas. Por outro lado, ao avanço desse ambiente de degradação social se juntaram os progressivos processos de desmonte de políticas públicas e a fragilização das instituições que formam a rede de proteção social, tanto no campo da alimentação, como no de outras condições exigidas para que se tenha uma vida digna e saudável[2].

Contudo, uma constituição mais coerente dessa análise social tem que admitir que tais debilidades no contexto brasileiro não são derivações somente do momento pandêmico. Pelo contrário, a pobreza, a fome, o desemprego e a desigualdade social fazem parte de um projeto político de longa estrada. Cabe lembrar que no Brasil o arcabouço político carece exorbitantemente pela permanência de misérias, essa que sustenta o velho sistema do voto de cabresto e promessas de tons messiânicos. Nesse sentido, cabe a todos a seriedade para não enfeitar um momento de pandemia e pós – viral.


[1] O recorte que realizamos aqui não excluí que a fome e outras debilidades sociais humanas que abarcam o mundo não são de interesse aos desdobramentos do nosso artigo. O recorte é algo metodológico que visa objetividade do assunto. No entanto, é necessário ressaltar que justamente a fome é mazela que se apresenta de modo agravante nas duas primeiras décadas do século XXI. “Já em meados da década de 2010, a fome havia começado a aumentar, destruindo as esperanças de um declínio irreversível. Perturbadoramente, em 2020, a fome disparou em termos absolutos e proporcionais, ultrapassando o crescimento populacional: estima-se que cerca de 9,9% de todas as pessoas tenham sido afetadas no ano passado, ante 8,4% em 2019. Mais da metade de todas as pessoas enfrentando a fome (418 milhões) vive na Ásia; mais de um terço (282 milhões) na África; e uma proporção menor (60 milhões) na América Latina e no Caribe. Mas o aumento mais acentuado da fome foi na África, onde a prevalência estimada – em 21% da população – é mais do que o dobro de qualquer outra região. Também em outras medições, o ano de 2020 foi sombrio. No geral, mais de 2,3 bilhões de pessoas (ou 30% da população global) não tinham acesso a alimentação adequada durante todo o ano: esse indicador – conhecido como prevalência de insegurança alimentar moderada ou grave – saltou em um ano tanto quanto nos cinco anos anteriores combinados. A desigualdade de gênero se aprofundou: para cada 10 homens com insegurança alimentar, havia 11 mulheres com insegurança alimentar em 2020 (comparados a 10,6 em 2019). A má nutrição persistiu em todas as suas formas, com as crianças pagando um preço alto: em 2020, estima-se que mais de 149 milhões de crianças menores de 5 anos sofriam de desnutrição crônica, ou eram muito baixas para sua idade; mais de 45 milhões tinham desnutrição aguda, ou eram muito magras para sua altura; e quase 39 milhões estavam acima do peso. A alimentação saudável permaneceu inacessível para três bilhões de adultos e crianças, em grande parte devido ao alto custo dos alimentos. Quase um terço das mulheres em idade reprodutiva sofre de anemia. Globalmente, apesar do progresso em algumas áreas –como, por exemplo, mais bebês sendo alimentados exclusivamente com leite materno –, o mundo não está a caminho de atingir as metas de nenhum indicador de nutrição até 2030”.  (Acesso site Unicef Brasil. 14/06/2022 .https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/relatorio-da-onu-ano-pandemico-marcado-por-aumento-da-fome-no-mundo.)

[2] Rede Penssan, p. 20, 2022.


Covid-19 e Pós-Pandemia: o desespero por conceituar

Algo que aflorou nessa ocasião pandêmica foi a imediatez por conceituar, ou seja, anseio desmesurado em determinar o que de fato era pandemia e pós-pandemia. Tal desesperação englobou pensadores da esfera acadêmica, políticos, leigos, religiosos, ou seja, indivíduos de todas as esferas.

Essa imediatez despontou que, em pleno século XXI, o ser humano ainda tende outorgar respostas sem embasamentos científicos e probabilidades viáveis. Isso declara que a mera opinião (doxa, ou seja, crença superficial) ainda vigora com certo espaço na contemporaneidade. Ao olharmos para a realidade brasileira, no começo da pandemia, é possível verificar vários personagens contribuindo para certa imediatez[3].

As implicações dessa conceituação imediata abalizaram para uma relativização ingênua ante o vírus. Foi através desses ajuizamentos de mera opinião que a sociedade brasileira adveio averiguar de modo mais declarado o antificientismo e o obscurantismo, esses que contribuíram em demasia para o movimento antivacina no Brasil. Não resta dúvida que tais questões contribuíram para uma empreitada desinformativa e simplista.

Entretanto, que fique claro, não existe nenhum problema em se posicionar e ajuizar, porém, fazê-lo com imediatez não é só ingenuidade, é também falta de amor a vida, falta de respeito as alteridades. Cabe lembrar que todo posicionamento conceitual não pode cair no figurino do imediatismo. A promoção de conceitos, e de posicionamentos que envolvem a vida, a saúde, a sociedade, a política, entre outras demandas, deve fundar-se de modo sério, com pesquisa, e obter rigor científico. Até que ponto uma resposta imediata vale para sociedade? No contexto brasileiro, os números de mortes revelam o resultado de uma resposta e conceituação frágil, ou seja, mais de 650 mil mortes. A seriedade com a vida e o rejeite da mera opinião nos ofereceria um cenário menos dolente como esse.


[3] O próprio presidente Jair Messias Bolsonaro e aliados de seu partido classificaram a Covid-19 como uma “simples gripezinha”. Embora o próprio presidente buscou negar sua lastimável fala, o site jornalístico BBC New Brasil procurou rastrear o imprudente comunicado. “Durante a sua já tradicional live das quintas-feiras, o presidente Jair Bolsonaro disse que nunca chamou a covid-19 de ” gripezinha” e afirmou que não existe nenhuma gravação que mostre o contrário. “A grande mídia falando que eu chamei de gripezinha a questão do covid. Não existe um vídeo ou um áudio meu falando dessa forma”, disse o presidente. Em março deste ano, no entanto, o presidente usou a expressão ao menos duas vezes publicamente. A primeira vez, em uma coletiva de imprensa, no dia 20 de março: “Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar, tá ok?”. Quatro dias depois, voltou a usar o termo em pronunciamento nacional em rádio e TV: “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido médico, daquela conhecida televisão”. Ele se referia a uma fala do médico Drauzio Varella, que apoiadores do presidente resgataram de um vídeo de janeiro deste ano. Mais tarde, o médico gravou novo depoimento em que reconhecia que havia subestimado o novo coronavírus (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55107536)


Eclesiologia Fragilizada

Seria extremamente pertinente se na pandemia e pós-pandemia – Covid-19 – os olhos da sociedade pudessem apreciar na eclesiologia cristã um ambiente caritativo, misericordioso e compassivo, ou seja, onde a luta pela vida, pela saúde e ciência fossem pautas encarnadas.  No entanto, os desdobramentos cristianizados – protestante e católico – que perpassaram os anos da pandemia (2020 e 2021) demonstraram uma postura eclesiástica de ética moralista, salvacionista, de pastoralidade desencarnada, longe do mundo e do ser humano que padece.

É claro que o parecer poderia ser diferente, pois a devoção confessada na pessoa de Jesus de Nazaré sempre transluziu o engajamento da amorosidade, da esperança e da resistência em prol da vida. No entanto, as impressões evangélicas e católicas que abrolharam nesse tempo pandêmico mostraram um cristianismo fechado, de pouco diálogo, em prol do negacionismo, do anticientificismo, em prol das teorias conspirativas. Infelizmente o argumento “Deus acima de tudo”, slogan que perpetuou a cristandade atual, mostrou a velha face eclesiológica de idealidade metafísica, essa que se manifesta sempre afastada da mundanidade e plenamente contentada com seus favoráveis litígios, e consequentemente fragilizada perante a própria contextura.

De certa forma, o momento pandêmico vivenciado no Brasil despontou algo para além do vírus, trouxe à tona, com feitio gritante, o descompasso entre o caminhar da igreja e o compasso da sociedade, ou seja, demonstrou os tons de uma fragilidade cristianizada, essa que ainda se realiza na indiferença, na falta de encarnação com a cultura, com a ciência, com a técnica e a arte. Além disso, outra fragilização exposta é o da discursividade, pois a palavra “cristã” em meio a pandemia assumiu a defesa por traços e trajes de uma discursividade moralista e escapista. Enquanto, a atual sociedade experiencia tons de uma discursividade pós-moderna, o movimento eclesiástico ainda zela por discursos teológicos medievalesco.

Essas tonalidades que estamos apontando são fatos que foram expostos e nos servem ainda para entender a igreja pós-pandemia. Assim, não tem como negar que o desafio é grande e exige que a igreja esteja pronta para a si mesmo se questionar, reformular, e que ela esteja aberta para dialogar, ponderar, considerar, e não somente concluir.


Bibliografia

II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil [livro eletrônico]: II VIGISAN : relatório final/Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar – PENSSAN. — São Paulo, SP : Fundação Friedrich Ebert : Rede PENSSAN, 2022.

Acesso site Unicef Brasil – 14/06/2022  https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/relatorio-da-onu-ano-pandemico-marcado-por-aumento-da-fome-no-mundo

Acesso site bbc Brasil – 27/06/20222https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55107536


Sobre os autores

Doutorando André Luiz Borges da Silva (UEM)
Doutorando Éder Wilton Gustavo Felix Calado (UEL)
Mestrando Cezar Augusto Flora (FTSA)
Mestranda Varlderly Arguelis Cesar (FTSA)