O mundo e a igreja pós-pandemia | Por Sandro Baggio

Introdução

Em 11 de março de 2020 a OMS declarou a Covid-19 como pandemia. Duas semanas antes, o vírus Sars-CoV-2 que havia contaminado pessoas num mercado de animais na cidade de Wuhan, China, em dezembro de 2019, teve sua circulação detectada no Brasil. A rapidez com que o vírus se espalhou pelo mundo foi impressionante, sufocando os sistemas de saúde com internações por pneumonia e deixando um rastro crescente de óbitos. Em pouco tempo, o vírus fazia vítimas cada vez mais próximas de quem antes achava que um problema na China fosse algo distante demais para afetar vidas do outro lado do mundo. Tal como George Michael disse em 1990 na música Praying For Time, num prenúncio do que seria o novo mundo após a queda do Muro de Berlim, “And you find that what was over there is over here (E você descobre que o que estava lá, está aqui).

A igreja não foi poupada dos efeitos da pandemia. Ao ter suas portas fechadas, ela também se viu forçada a refletir uma vez mais sobre sua importância e presença num mundo frágil, da dor, sofrimento e morte. Ao fim da pandemia, a igreja precisa enfrentar uma nova realidade, considerando seus efeitos e quais as possíveis implicações para seu ministério pós-pandemia.

O mundo pós-pandemia

O mundo pós-pandemia não é o mesmo. Embora termos como “novo normal” tenham sido abandonados como expressões sem sentido, a realidade é que não é possível voltar ao que era antes dessa catástrofe cujos danos econômicos, políticos e sociais são os maiores desde a Segunda Guerra Mundial (ZAKARIA, 2020, p. 8). A pior epidemia nos últimos cem anos (HARARI, 2020, p. 59) expôs o quão frágil, de fato, é este admirável mundo novo. Como expressou o filósofo francês Edgar Morin: “Nossa fragilidade estava esquecida; nossa precariedade, ocultada. O mito ocidental do homem cujo destino é tornar-se ‘senhor e dono da Natureza’ desmorona diante de um vírus.” (MORIN, 2021, p. 22). Um vírus que “é 1/10.000 o tamanho do ponto final dessa frase” (ZAKARIA, 2020, p. 8) forçou nações ricas e pobres a um isolamento social jamais imaginado, despertando em seus cidadãos o medo diante da possibilidade de se tornarem mais um número nas estatísticas de contágio e morte.

Um mundo polarizado

O mundo que emerge pós-pandemia é um mundo polarizado. A polarização já havia dado sinais alarmantes nos últimos pleitos eleitorais na Europa, nos EUA e no Brasil. O vírus, no entanto, a acentuou ainda mais. Além disso, “o isolamento serviu de lente de aumento para as desigualdades sociais: a pandemia acentuou dramaticamente as desigualdades socioespaciais.” (MORIN, 2021, p. 27). Enquanto a mensagem transmitida era “fique em casa”, milhões de trabalhadores não tinham essa escolha e eram forçados a arriscarem suas vidas a cada dia em trabalhos essenciais frequentemente não valorizados. Como diz Morin, falando da realidade da França que, na crise, não difere daquela vivida em muitos países:

Nem todo mundo tem residência extra para fugir da cidade. Algumas condições exíguas de moradia para famílias com filhos tornam o isolamento inviável, sem falar dos sem-teto, dos refugiados chamados de migrantes ou imigrantes, para quem esse isolamento foi um sofrimento duplo. Ele revelou as tristes condições de alguns solitários, solitárias, viúvos, viúvas, mulheres abandonadas, idosos e jovens sem dinheiro. Mostrou também que aqueles que estão na ponta de baixo da corda — coletores de lixo, operadores de carga, caminhoneiros, caixas ou telefonistas — são mais vitalmente necessários que os grandes acionistas da Bolsa de Paris (em que só uma minoria deu mostras de certa solidariedade). Enquanto jovens da periferia, donos de restaurantes, donas de casa preparavam refeições gratuitas para os desfavorecidos, os da ponta de cima na maioria das vezes ficavam esperando em seus píncaros a hora de puxar de novo a corda para si. (MORIN, 2021, p. 27).

Essa desigualdade foi explorada por diferentes lados do espectro político, numa guerra de narrativas e fake news, aumentando a tensão política e a hostilidade nas redes sociais. Tal polarização configura-se uma ameaça crescente à unidade da igreja e sua relevância no mundo pós-pandemia, à medida em que seus líderes e membros se engajam cada vez mais no debate político, assumindo posições ideológicas e partidárias com fervor religioso.

Um mundo assombrado

Mais de seis milhões de vítimas fatais do coronavírus tornaram o mundo pós-pandemia um tanto assustado e assombrado pela morte. Durante dois anos, fomos forçados a assistir os noticiários exibindo gráficos da tragédia. Sentimos uma ansiedade sufocante diante da falta de oxigênio e de respiradores nos hospitais superlotados. Ficamos horrorizados com imagens de valas abertas por retroescavadeiras para enterrar centenas de mortos diariamente. Acompanhamos pelas redes sociais a dor e sofrimento de famílias que foram privadas das despedidas tradicionais de seus entes queridos vítimas do vírus. A morte chegou mais próxima, despertando-nos do sono da autossuficiência. Ou será que não?

A pandemia evidenciou dois tipos de respostas pós-modernas diante da morte. A primeira é do enfrentamento da morte não pela crença, mas pela ciência, como se esta fosse capaz de extinguir a morte. Yuval Noah Harari é alguém que representa bem esse tipo de resposta. Para ele, a morte é uma “falha técnica” – ou problema meramente mecânico – que pode ser superado através do conhecimento e desenvolvimento científico:

No momento, não podemos resolver todos os problemas técnicos possíveis. Mas trabalhamos para isso. As melhores mentes humanas já não gastam seu tempo tentando dar um sentido à morte. Em vez disso, ocupam-se em prolongar a vida. Investigam os sistemas microbiológicos, fisiológicos e genéticos responsáveis pelas doenças e pelo envelhecimento e desenvolvem novos remédios e tratamentos revolucionários. (HARARI, 2020, p. 49).

A segunda resposta pós-moderna à realidade da morte evidenciada pela pandemia é a resignação. Como diz Morin:

Ora, o extremo poder da técnica e da ciência não abole a debilidade humana diante da dor e da morte. Embora possamos atenuar a dor e retardar a morte pelo envelhecimento, nunca poderemos eliminar os acidentes fatais em que nosso corpo será aniquilado; nem nos livrar de bactérias e vírus, que estão o tempo todo se automodificando para resistir a medicamentos, antibióticos, antivirais, vacinas. (MORIN, 2021, p. 23).

É justamente em tempos como este que a igreja pode recuperar sua voz e oferecer uma resposta além da ilusão da “falha técnica” a ser solucionada pelos avanços científicos e da resignação sem esperança. Trata-se da resposta que reconhece a finitude e impotência humana para a qual técnica e ciência não dão conta, mas também oferece a resposta da comunhão no sofrimento, do consolo aos enlutados e da esperança além do túmulo. Essa voz esquecida em tempos pós-modernos foi lembrada por Morin na pandemia, ao reconhecer que a “falta de cerimônia consoladora levou as pessoas, inclusive as laicas como eu, a sentir a necessidade de rituais que façam a pessoa morta reviver intensamente em nosso espírito e atenuem a dor numa espécie de eucaristia” (MORIN, 2021, p. 25).

A igreja na pandemia

O mundo pós-pandemia marcado pela dor, perdas, luto e danos emocionais é um mundo que precisa mais do que nunca ouvir a voz do consolo, da solidariedade e da esperança que somente a igreja tem a oferecer por meio do Evangelho. Mas onde esteve a igreja na pandemia? A igreja também participou na comunhão dos sofrimentos do mundo na pandemia. Também experimentou o isolamento social, sofreu danos econômicos, perdeu líderes e membros da congregação cujas vidas foram ceifadas pela Covid-19, foi forçada a aprender novas formas de conexão e atualizar-se num mundo digital de maneira muito rápida, levando pastores e líderes ao esgotamento.

No entanto, a resposta da igreja revelou sua polarização. Por um lado, testemunhamos uma igreja que se entende no mundo sem ser do mundo e que triunfa sobre os portões do inferno (seja de qual forma estes se manifestem). Uma comunidade de fé que respondeu ao momento com coragem para efetuar mudanças, rapidez na resposta de adaptabilidade e prontidão ao serviço compassivo. Dessa igreja vimos a beleza da perseverança, da solidariedade, do repartir o pão com os necessitados, da sensibilidade e respeito pela dor e sofrimento alheio.

Por outro lado, com tristeza, testemunhamos também parte da igreja engajada na guerra cultural e política, abraçando o negacionismo do movimento anti-vacina, insistindo no direito de reunir-se presencialmente num tempo em que o bom senso e a prudência pediam o distanciamento. Enquanto muitas igrejas fizeram de seus assentos vazios espaços para distribuição de alimentos e itens de higiene aos mais pobres, outras promoveram fake news, demandaram o fim do uso de máscaras e a abertura dos templos.

E agora, como viveremos?

A igreja pós-pandemia enfrenta a tentação de voltar a atividades pré-pandemia como se tudo fosse igual numa pressão para o ativismo (muitas programações) como forma de recuperar o “tempo perdido”. Mas é preciso entender que não se trata apenas de tempo perdido. As perdas foram maiores, mais marcantes e mais profundas. A igreja foi atingida por “um furacão de categoria 5” (CARTER, 2021). A edição online de 8 de janeiro de 2022 da revista The Economist trouxe um artigo intitulado The world’s religions face a post-pandemic reckoning (As religiões mundiais enfrentam um acerto de contas pós-pandemia) apontando as dificuldades que muitas igrejas estão enfrentando pós-pandemia:

Igrejas que atendiam efetivamente às necessidades de seus rebanhos antes da pandemia tiveram a tendência de prosperarem à medida que as pessoas se preocupavam mais com a morte – e no confinamento encontraram mais tempo para adoração e oração. Mas as igrejas que já estavam lutando descobriram que está cada vez mais difícil manter suas congregações. A pandemia acelerou a mudança para os cultos online, dando a muitos dos fiéis uma desculpa para deixar de congregar. Muitas instituições religiosas fecharam suas portas repentinamente, transferindo seus cultos para o Zoom. Agora, com a reabertura de seus prédios, não têm certeza sobre quantos fiéis retornarão. Se, como parece provável, poucos voltarem, duas tendências que já eram perceptíveis podem se intensificar. Muitas organizações religiosas se livrarão de suas propriedades subutilizadas. E mais igrejas se fundirão. (The Economist, 08/01/2022, versão online).

Na pandemia fomos forçados a adotar o “modo sobrevivência”. Como um navio numa forte tormenta, nossos esforços se voltaram para manter o máximo possível a estabilidade da embarcação e não afundar. No entanto, precisamos reconhecer que, em meio a tormenta, somos empurrados pela força das águas e do vento e corremos o risco de perder o rumo, o senso de direção. Por este motivo, tão logo começamos a sentir que atravessamos a tormenta, precisamos voltar o foco para nossa rota e fazer qualquer correção necessária.

Eis a tarefa da igreja pós-pandemia: corrigir seu rumo. Para isso a igreja precisa evitar dois erros: o primeiro é pensar e agir como se nada tivesse mudado, como se tivéssemos retornado exatamente para o local de onde paramos. O segundo é achar que tudo mudou e que nada é igual. O mundo não é o mesmo, mas nem tudo mudou. Há coisas que mudam e coisas permanecem iguais mesmo em meio a grandes e repentinas mudanças. A sabedoria da ação encontra-se no discernimento do que mudou e do que permanece.

A pandemia nos ensinou que tudo pode mudar de repente. Por este motivo, é preciso estar preparado para mudanças e instabilidades. As igrejas precisam repensar o uso de suas finanças, precisam criar fundo de emergência e aprofundar a conscientização da contribuição financeira não como uma resposta a apelos emotivos durante o ofertório/culto, mas como a prática de uma mordomia generosa, expressão de gratidão na vida cristã e resistência ao espírito de avareza e consumo.

A quarentena e o isolamento social serviram para nos lembrar da realidade da igreja além dos limites do templo e do prédio. O fechamento dos templos e a necessidade de adaptação da comunicação dos pastores e líderes com os fiéis se assemelha a um episódio na história da igreja em El Salvador na década de 1980. Quando o Estado autoritário tentou proibir a igreja de usar sua estação de rádio para transmitir a mensagem, o arcebispo Oscar Romero dirigiu-se à sua paróquia com as seguintes palavras:

Eu repito o que já disse a vocês antes quando temíamos perder nossa estação de rádio: o melhor microfone de Deus é Cristo, e o melhor microfone de Cristo é a igreja, e a igreja são todos vocês. Que cada um de vocês, em seu próprio trabalho, em sua vocação (…), cada um em seu próprio lugar viva a fé intensamente e sinta que em seu ambiente você é um verdadeiro microfone de Deus nosso Senhor. (ROMERO, 2007, p. 199-200).

A igreja são as pessoas, o povo de Deus e a família de Deus. Isso deve nos levar a certas ênfases pós-pandemia. Precisamos enfatizar que nossa espiritualidade não pode depender de encontros e momentos emotivos de adoração comunitária. É preciso aprofundar a fé e ensinar os cristãos a se alimentarem sozinhos. É preciso investir na formação de discípulos que aprendem a ser servos em vez de consumidores. É preciso enfatizar as reuniões familiares e pequenos grupos de comunhão que oferecem à igreja a capacidade de superação em tempos de crise e perseguição. É preciso reforçar o aspecto relacional da fé, fomentando amizades espirituais e cuidado mútuo.

A igreja na pandemia foi forçada a aprender a usar meios e ferramentas virtuais para se comunicar com seus membros. Trata-se de um erro pensar que, pós-pandemia, deve-se abandonar por completo o uso online como se fosse inútil no retorno aos encontros presenciais. Muitas das mudanças trazidas pelo mundo online durante a pandemia vieram para ficar. Empresas, instituições financeiras, governamentais e educacionais continuarão usando meios online para seus serviços e interação com seus colaboradores e clientes. A igreja não pode desprezar essa realidade. Em vez disso, é preciso se adaptar e fazer o melhor possível para usar as ferramentas adquiridas e aprendidas na pandemia de maneira sábia e agregadora à missão da igreja. Por outro lado, um erro mais grave ainda será assumir o online como substituto permanente para os encontros presenciais.

As condições de desemprego e privações que foram sentidas principalmente pelos mais pobres na pandemia levaram muitas igrejas a um engajamento social extraordinário, servindo os necessitados em seu entorno com doações de alimentos e outras formas de amparo. É preciso aproveitar esse engajamento para continuar servindo os vulneráveis de um mundo cada vez mais desigual e injusto.

A igreja precisa também se arrepender de seu apego político partidário e retornar ao centro do Evangelho e da pessoa de Jesus que não pode ser refém de nenhuma ideologia ou espectro político. Se não fizer isso e insistir na polarização política e na guerra cultural, a igreja perderá ainda mais a capacidade de ser uma voz de consolo e esperança num mundo enlutado e assombrado pela morte. Pior ainda, a fragmentação da igreja a tornará débil e vulnerável num mundo no qual as crises e as dificuldades se tornarão cada vez mais frequentes. É preciso trabalhar pela unidade e catolicidade da igreja, enfocando o essencial, praticando a caridade e espírito de cooperação além das fronteiras teológicas e denominacionais.

A pandemia ofereceu à igreja a oportunidade de redescobrir a dimensão esquecida do lamento como uma prática espiritual do povo de Deus. O lamento nos ajuda a tirar nossos olhos da sedução do mundo visível e transitório e nos voltarmos para as realidades do invisível e eterno. O lamento nos torna participantes da comunhão dos santos também em seu sofrimento e faz ecoar novamente em nossos lábios as expressões “Até quando, Senhor?” e “Maranatha! Vem Senhor Jesus!”

Conclusão

O mundo pós-pandemia mudou e a igreja pós-pandemia não pode continuar a mesma. Ela precisa ser uma igreja que trabalhe incansavelmente pela unidade; que rejeite a sedução do poder e a tentação de mudar o mundo pela via política; que busque aprofundar-se na espiritualidade relacional; que prepare-se para enfrentar períodos de instabilidade; que prontifique-se para o serviço sacrificial e compassivo; e que reaprenda a linguagem da dor e do lamento. Uma igreja assim continuará sendo uma voz deesperança num mundo naufragando no desespero.

Referências bibliográficas

CARTER, Paul. Pastoring after this pandemic. TGC Canadian Edition, 21/02/2021. Disponível em:  <https://ca.thegospelcoalition.org/columns/ad-fontes/pastoring-after- this-pandemic/> Acesso em 31/03/2022.

HARARI, Yuval Noah Harari. Notas sobre a pandemia. E breves lições para o mundo pós-coronavírus. Tradução: Odorico Leal. (1a ed.) São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MORIN, Edgar. É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020 (edição do Kindle).

ROMERO, Oscar. The violence of love. Farmington, PA: Plough Publishing House, 2007.

ZAKARIA, Fareed. Dez lições para o mundo pós-pandemia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020 (edição do Kindle).

God, Mammon and real estate. The world’s religions face a post-pandemic reckoning. The Economist. Versão online da edição impressa de 8-14/01/2022. Disponível em <https://www.economist.com/international/2022/01/08/the-worlds-religions-face-a-post-pandemic-reckoning> Acesso em 29/03/2022.


Sobre o autor

Sandro R. Baggio é graduado em Teologia e Filosofia, pastor na Igreja Batista Memorial de Alphaville e professor no Seminário Teológico Servo de Cristo.