Entrevista | com o Prof. Dr. Flávio Henrique | Por Mônica Carvalho

Cuidado pastoral da Igreja em tempos de dificuldades sociais

Introdução

Nós passamos por uma pandemia de covid-19 que trouxe mudanças profundas na maneira de pensar, fazer e viver a igreja. Quando a pandemia fechou os templos, foi preciso criar estratégias para manter os fiéis em comunhão e, principalmente, para oferecer o cuidado pastoral junto às pessoas que enfrentaram crises, incertezas e até luto. A pandemia passou, mas as imprevisibilidades da vida não.

Os dias difíceis descritos nas Escrituras e profetizados por Jesus já são realidade em nosso presente. Vemos o aumento de catástrofes, de terremotos, enchentes, surtos de vírus e bactérias, desemprego, além das questões que são próprias da contemporaneidade. Problemas esses que originam outras dificuldades, como por exemplo, depressão, pobreza etc. Mas, será que a Igreja está discernindo os sinais do tempo? Como argumentou Jesus em Mateus, capítulo 16, verso 3: “Sabeis, na verdade, discernir o aspecto do céu e não podeis discernir os sinais dos tempos?”

Vivemos tempos em que a Igreja precisa, mais do que nunca, cumprir sua missão e desempenhar um papel de cuidado e acolhimento para com as pessoas. É imprescindível que a Igreja se aperceba da necessidade de, no aqui e agora, ter uma voz ativa, profética, relevante para a sociedade. É essencial que se abra para debater temas importantes do contexto sociocultural, ou seja, fora do ambiente eclesiástico, que influenciam e impactam também a vida de seus membros.

E mais, que possa oferecer um lugar de refúgio libertador para aqueles que sofrem com as intempéries da vida. O professor Flávio Henrique, em sua experiência pessoal, ministerial e acadêmica, com certeza já enfrentou muitos desafios que o levaram a criar oportunidades em tempos de crise. Escreveu sobre temas como justiça e Reino de Deus e tem inspirado estudantes de teologia com a visão de uma práxis teológica que seja bíblica, missional e transformadora.

Na sua igreja em Londrina, no Paraná, desenvolveu um planejamento inovador durante a pandemia e promoveu diversas atividades que vão muito além do culto. Hoje, a Igreja Presbiteriana da Vila Judith oferece um espaço cultural para crianças, aulas de arte, cursos de música e esportes, além de programações diferenciadas que estão abertas para toda a comunidade.

Pergunta – Professor, fala-se muito da necessidade de o cristão ter discernimento, especialmente em tempos difíceis. A pergunta é: Como a igreja, sua liderança, pode discernir os sinais dos tempos hoje?

Prazer estar aqui com vocês, conversar sobre esse tema tão importante. Você falou na introdução sobre tantas questões que são próprias do nosso tempo e para muitas delas, inclusive, nós estamos procurando respostas. Na verdade, tentando entender as perguntas também. Acho que esse é um movimento necessário e tudo isso passa, de alguma forma, pelo tema do discernimento. A gente parte do princípio de que o discernimento é um dom que recebemos do Espírito Santo, mas, também exige de nós algumas posturas.

Eu penso que a nossa maior crise de discernimento começa pela nossa falta de envolvimento. Quando se vive exclusivamente para si mesmo, e essa é uma tendência humana, dificilmente conseguimos perceber o que está à nossa volta. E aqui começa, na minha opinião, a nossa crise de discernimento. Ás vezes, somos levados pelo espírito do nosso tempo que nos faz olhar para o nosso próprio umbigo e impende de perceber a vida como ela é, a vida como ela está, as pessoas como são e como estão. É isso! Eu acho que isso entra em tensão, em conflito com essa característica própria da igreja, que é a capacidade de observar os tempos. Devemos desenvolver o dom; esse é um dom comunicável, de Deus a todos nós.

Todos nós somos chamados para esse movimento de sabedoria, que mostra o que estamos vivendo e imprime uma capacidade de observação que muitas vezes nos falta. Nos falta, não por uma questão de vocação; nos falta, não por uma questão de habilidade, mas simplesmente por seguir o espírito do nosso tempo. Tempo em que os olhos estão fechados, os corações estão fechados, para perceber a vida como ela é, a vida como ela está. Então, mais do que consultar os sábios do nosso tempo, precisamos recuperar a nossa própria vocação, porque como Igreja de Deus, somos um povo que deve desenvolver a sabedoria que vem do alto.

Para que essa sabedoria se expresse aqui, no nosso jeito de viver, de conviver, no nosso jeito de se comunicar, de se relacionar, a gente deve estabelecer o discernimento. Precisamos aprender a olhar para a vida com um olhar mais amplo e mais liberto das nossas próprias tendências. Libertos do olhar voltado somente para nós mesmos. Talvez esse seja o nosso desafio hoje. Nós precisamos mais do movimento de Jesus, daquele que olha para a cidade, tem compaixão da multidão, e não se conforma com as coisas como estão. Nos falta um pouco dessa sensibilidade. Enquanto os nossos olhos estiverem para baixo, teremos dificuldade para discernir, para desenvolver esse dom.

Pergunta –  Como nós, no agora, sendo o corpo de Cristo, a boca de Cristo, a mão de Cristo, devemos nos posicionar frente as crises sociais e as injustiças? Como podemos, além de nossos púlpitos, continuar exortando acerca das injustiças contra o necessitado, contra o carente, ou aquele que está sozinho? Como podemos desempenhar esse papel no agora, e principalmente, tirando os olhos de nós mesmos, olhar para a realidade à nossa volta e desempenhar um papel efetivo de mudança?

Eu penso que temos um problema sério quanto à questão da percepção de nossa identidade. Bom, se a gente não sabe bem quem a gente é, dificilmente conseguiremos desenvolver os nossos papéis e as nossas funções, porque as nossas percepções, na minha opinião, estão um pouco equivocadas. A sua pergunta levanta a questão fundamental do que é ser Igreja. Nós estamos enfrentando a falta dessa compreensão mais aguçada, mais profunda, do significado de ser Igreja. Nos prometeram lá atrás, em alguns projetos de evangelização, que o ser Igreja tinha a ver com resolver a nossa própria vida e com aquilo que a gente podia ganhar. E deixamos de lado perguntas fundamentais do Evangelho que tem a ver com questões a respeito daquilo que se precisa perder. Então, se num movimento como o atual, que nós chamamos de Igreja, nós estamos todos preocupados com os benefícios da vida, seja no aqui agora ou seja no além, isso certamente fere a nossa identidade e automaticamente fere os nossos olhares.

Assim, enquanto eu estiver olhando para a minha vida, olhando para mim mesmo, olhando até para a eternidade, mas somente numa perspectiva daquilo que eu posso ganhar, daquilo que eu posso conquistar, isso automaticamente me tira do quem eu sou, daquilo que eu deveria ser e daquilo que eu deveria fazer naturalmente por causa da essência. Eu não entendo que o Evangelho é a respeito das coisas que eu estou pronto para perder. A motivação é invertida. A gente tem uma crise séria de motivação e por isso, as pessoas se achegam na vida eclesial, religiosa, para a vida na Igreja, com um tipo de expectativa distorcida. Precisamos rever posições e motivações se queremos ser a Igreja que Jesus nos chamou para ser.

Pergunta – Professor, você organizou um livro que fala um pouco sobre isso, sobre a temática da justiça e da liturgia crítica dos profetas, a contradição entre o culto e a vida, que é justamente esse contraditório entre o discurso, o culto e a vida prática. Por favor, fale um pouquinho acerca disso, e claro, sobre o seu livro.

Essa questão não é nova. A gente vê essa discussão lá nos profetas do Antigo Testamento. O livro é sobre isso e surge exatamente de uma tentativa de ler os profetas nessa perspectiva. Desde então, fazendo um recorte aos profetas, havia uma noção equivocada ou uma noção limitada a respeito do conceito de culto. O que é culto a Deus? O que era culto a Deus naquele período? Bom, para o povo de Deus, de maneira geral, o culto estava ligado a um ritual com hora marcada e com lugar definido. É bom lembrar que a Bíblia nunca questionou que tenhamos expressões litúrgicas como povo de Deus, que tenhamos alguns rituais determinados. Essa nunca foi a questão. A grande questão é que todo o ritual, necessariamente, tem um termômetro. E o termômetro do ritual que agrada a Deus desemboca na vida. Por isso, precisamos rever o sentido de culto. Ele não deve estar limitado aos rituais que nós praticamos no final de semana ou ao que o povo de Deus praticava naquela época.

O que se exigia como expressão de culto estava muito além de ritualismo. Jesus também tocou nessas questões várias vezes, tentando despertar as pessoas para dizer que todo movimento de vida deve ser um movimento de culto, porque o Espírito de Deus é movimento. Se o Espírito de Deus é movimento, importa que adoração ao Espírito de Deus aconteça em movimento. A questão desse livro, e a questão aqui, não é questionar os nossos rituais domingueiros, mas é sempre perguntar se os nossos rituais são uma representação precisa do nosso jeito de viver, porque uma coisa precisa alimentar a outra. A maneira como eu vivo precisa alimentar a maneira como eu me expresso no ritual e a maneira como eu me expresso no ritual, precisa necessariamente contagiar a minha maneira de viver.

Eu não posso ser ou fazer só no domingo, na terça, deve haver uma constância em toda a vida. Eu não posso estender as mãos aos céus no domingo sem que elas estejam prontas, segunda-feira, para serem estendidas às pessoas à minha volta. Por isso, o conceito de justiça aparece aqui, porque os profetas estavam apontando exatamente para isso. O primeiro capítulo de Isaías é um resumo a esse respeito – “Vocês levantam as mãos no santuário, mas as mãos de vocês estão sujas de sangue, porque vocês deixaram de praticar a justiça”. A Bíblia mostra que Deus diz não querer sacrifícios, e que está cansado. Em alguns textos, a expressão do profeta é essa, como se Deus estivesse afirmando: “Eu estou cansado dos rituais de vocês, não porque não sejam bonitos, não sejam interessantes, não sejam bem-vindos, mas é porque eles são incompatíveis com o jeito que vocês vivem. Vocês cantam sobre Deus, mas não vivem o que estão cantando, nem falando sobre Deus”.

Esse tipo de culto se torna só barulho. Deus disse, está lá no Antigo Testamento, que isso gerava nele uma espécie de cansaço. Bom, qual é a contraproposta do Evangelho, da Palavra de Deus? É que a gente aprenda com o culto a partir daquilo que a gente vive e que a gente aprenda a viver a partir daquilo que a gente cultua. Então, enquanto não existe esse movimento, existe o contraditório. E o que mais me preocupa, como pastor, é que a igreja brasileira é muito mais ritualista do que uma igreja que já entendeu que culto é uma coisa de todo dia, deve acontecer também no cotidiano, na vida, em tudo o que eu faço, em tudo o que eu sou, na minha maneira de me relacionar com as pessoas. Precisamos entender esse conceito mais amplo de culto, que está intimamente ligado com as expressões de vida.

Eu tenho alguns colegas que inclusive mudaram algumas coisas nas suas igrejas, como por exemplo, tiraram o termo “culto” e começaram a usar “reunião” ou “celebração”, para que as pessoas entendam que culto é aquilo que a gente faz. Domingo, para mim, é um momento de entrega, um momento de celebração, de reunião do povo de Deus, em que também cultuamos a Deus. Mas, o culto ele extrapola os nossos limites geográficos, os nossos limites cronológicos.

Pergunta – Professor, a palavra culto é muito comum no meio eclesiástico, já a palavra justiça nem tanto. Você acha que há uma falta de compreensão ou uma falta de associação da ideia da prática da justiça como manifestação desse movimento de vida em Deus, que mencionou?

Esses conceitos, na visão dos profetas, estavam intimamente ligados. Já no Novo Testamento, a gente começou a emprestar da Bíblia, a teologia começou a emprestar da Bíblia, – e que bom que fez isso- mas, só um lado da mesma moeda. Passou-se a falar muito a respeito da justiça de Deus, que é aquela que nos justifica, que é aquela que muda o olhar de Deus em nossa direção, porque é um olhar a partir do sacrifício de Jesus. Mas, a gente se esqueceu que o outro lado dessa moeda é marcado por uma vida que é a expressão de justiça em tudo aquilo que se faz, na sua maneira de enxergar a vida e de se relacionar. Me parece que às vezes nos falta um conceito mais claro a respeito do que significa a nossa prática de justiça. Como essa prática deveria se desenvolver nas relações. Precisamos pensar que a justiça de Deus, que é uma justiça justificadora, ao mesmo tempo, e exatamente por isso, nos torna envolvidos com a prática de uma justiça que também deve ser comum nas relações humanas.

Jesus chega a dizer em alguns momentos que a nossa justiça precisa, inclusive, exceder em muito a justiça daqueles que estão apegados à lei. Porque a justiça que se apega à lei, é a justiça própria e a justiça que a Bíblia pede de nós, primeiramente, é esse movimento de abandono da nossa tal justiça própria. Toda vez que eu estou apegado à minha justiça própria, dificilmente serei capaz de exercer justiça em favor de um diferente ou daquele que pensa diferente de mim, ou que está numa condição diferente da minha. Então, eu costumo dizer que o inferno na vida do crente é a sua justiça própria. Porque enquanto ele está apegado ao seu senso de justiça, ele passa a ser o seu próprio referencial de análise, seu próprio referencial daquilo que ele entende como a vontade de Deus se apropriando indevidamente da vontade de Deus, usando a vontade de Deus como uma justificativa para o seu conceito de justiça própria. E aí torna o caminho muito mais difícil para si mesmo e para quem tem que conviver com alguém assim.

Que Deus nos livre da justiça própria e que a gente possa abrir o nosso coração para a justiça de Deus. Que a gente abrace o conceito de justiça que nos faz abandonar a justiça própria, trocando-a por conceitos como misericórdia, graça e compaixão, que são tão próprios à linguagem bíblica e à linguagem do Evangelho.

Pergunta – Eu quero ainda pegar esse tema da justiça e voltar a nossa atenção para Jesus. Você inclusive, em um dos seus artigos para a revista Práxis Missional, fala de como Jesus abordava e contrapunha as questões do Império e como ele tinha esse olhar para as pessoas que sofriam a injustiça da própria instituição religiosa da época. Jesus trazia esse tema de maneira tão impactante, e de certa forma tão simples, com o objetivo de mostrar aos religiosos que eles praticavam a injustiça contra os marginalizados, com aqueles que eram condenados por estarem enfermos ou por ter alguma deficiência. Falando de igreja, de cuidado pastoral, como aplicar esse tema da justiça na perspectiva do que Jesus nos ensinou?

Primeiro é bom deixar claro que, e isso é muito fascinante, Jesus em momento algum, em qualquer lugar, deixou de cumprir a lei. O que Ele fez, na verdade, foi interpretar a lei na sua plenitude ou interpretar a lei de uma forma mais ampla. O posicionamento de Jesus nunca esteve ligado a questionar o valor da lei ou não. Mas, como é que nós interpretamos a lei? E por que ele teve que bater tanto nessa tecla? Porque os religiosos da época se apegavam à letra da lei e aplicavam a letra da lei com o conceito de justiça própria. Jesus, porém, pegava a mesma letra, da mesma lei, aplicando o conceito da justiça do Reino de Deus, que é um conceito muito mais amplo do que o nosso. Talvez levaria um semestre inteiro aqui para conversarmos sobre isso (risos).

Veja, é uma questão de perspectiva. Jesus em momento algum quebrou a lei, ele ampliou. Ele trouxe um novo olhar, uma nova perspectiva a respeito da mesma letra, tentando fazer aquilo que o profeta Jeremias havia profetizado, tirando a letra desse arcabouço da justiça própria e trazendo para os aspectos do coração. A lei, que disse o profeta Jeremias “A lei que hoje escrevo”, a lei escrita em tábuas de pedra, agora introduzida por Deus na nossa vida: “Eu vou escrever no coração de vocês”; não para que a lei seja substituída, mas para que percebam que há um equívoco de referencial. Porque enquanto eu sou o meu próprio referencial de aplicação da lei, eu vou me condenar.

Um bom exemplo é aquela cena da mulher adúltera. É um dos textos consagrados nesse sentido. Jesus aplica a lei a partir de uma nova perspectiva. Ou se você pegar os textos, por exemplo, de cura nos dias de sábado, verá que Jesus nunca questionou o sábado. Na verdade, ele pegava aquele princípio ali estabelecido a respeito do sábado e enfatizava, como se dissesse: “Bom, já que é sábado, já que é dia de expressar Deus na vida, nada melhor do que promover a própria vida”.

Veja, o problema é a inversão. A lei, toda a lei do Antigo Testamento, passa pelo conceito de justiça. Ela deveria estar a serviço da vida. Mas, quando eu uso o critério da justiça própria, eu coloco a vida a serviço da lei e aí, de alguma forma, acabo sacrificando a vida para que a lei seja cumprida. Jesus fez o inverso. Ele disse que toda a lei, como todo o sábado, foi feito por causa do homem e não o homem por causa do sábado. Se a lei é boa, precisa ser cumprida, mas, também precisa ser cumprir a sua função de promover a vida, de valorizar as coisas que Deus valoriza. O valor primeiro para Deus é sempre a vida. Deus valoriza tanto a vida que só Ele pode tirá-la. Ele dá, Ele tira. O Criador estabeleceu uma lei fundamental e absoluta de que a vida é sempre ato primeiro de Deus.

Pergunta – Professor, ainda olhando para Jesus, referente ao nosso tema que é cuidado pastoral, o cuidado da Igreja em momentos de dificuldades sociais… Jesus conseguia ver e estabelecer ações de cuidado porque ele estava fora do templo. Ele estava em lugar público, ele estava no meio da comunidade. Ás vezes a gente percebe que a igreja tem toda essa dificuldade de olhar, de se apresentar como um recurso, porque está muito dentro de si. A realidade que Jesus enfrentou é diferente da nossa, mas, ainda assim, quando nós falamos em teologia, em missão, o que fica claro é que devemos continuar seguindo o exemplo de Jesus, o mandamento de ir. Não é somente sair de dentro das quatro paredes, mas, ser uma igreja presente no meio da sociedade. Gostaria que você falasse um pouquinho sobre isso.

Eu acho que o princípio fundamental de tudo isso, passa pela palavra cuidado. Essa palavra é caríssima para nós, porque é uma das palavras que define o próprio Jesus. Ao estar no meio das pessoas, nesse movimento de estar onde as pessoas estão, Jesus não está criando apenas uma agenda, e sim desenvolvendo um jeito de ser, um jeito especial de ser humano. Esse jeito de ser humano é marcado pela prática do cuidado. De novo, não como uma agenda, não como um projeto, mas como um jeito de viver. Eu diria que nós temos certa dificuldade porque perdemos de vista esse princípio absoluto do cuidado.

A palavra cuidado é importante para a linguagem bíblica pois está, por exemplo, como um dos alicerces da construção de um ser humano. Como é que eu sei se eu estou diante de um ser humano? Se existe nele essa pré-disposição para o cuidado. A base disso é a nossa vocação no jardim. O ser humano, quando foi criado por Deus, imediatamente foi vocacionado para o cuidado. Na composição do ser humano existe aquilo que a gente vê como olhos, nariz, boca, orelha, mãos, pés, coisas que lhe são próprias, contudo, em nosso ser enquanto essência, Deus impregnou a impressão digital Dele. Porque Deus em sua essência, é um ser de cuidado.

Então, quando nos falta essa perspectiva ou esse olhar de cuidado, nós estamos, inicialmente, negando a nossa própria humanidade. Essa é uma dimensão de pecado, talvez a mais profunda; quando estou agindo ou me permitindo agir e reagir a partir do fluxo do nosso tempo, sem entender que pecado é tudo aquilo também que me torna menos humano. Compreender que a graça de Deus está em mim tem a ver com o quanto eu vou me tornando mais gente, mais humano e vou recuperando em mim a imagem do humano que foi perdida. E uma das características que precisa ser recuperada é a do cuidado. Deus colocou cada um de nós no meio de nossas famílias, nas nossas comunidades de fé, na cidade onde estamos, para que a gente se desenvolva como seres humanos, criados e chamados para o cuidado.

Jesus, na minha leitura, não estava desenvolvendo uma nova missão para a igreja, estava ensinado que precisamos nos expressar no mundo a partir daquilo que é próprio da nossa humanidade, de seres criados à imagem e semelhança do próprio Deus, que receberam do próprio Deus as suas virtudes. Viver na Terra como expressão dessas virtudes, assim, nosso senso de plenitude de vida se revela na nossa vocação como cuidadores. Quando eu não caminho na perspectiva do cuidado com o outro, isso se torna pecado, a negação do ser humano que eu deveria ser.

Pergunta – Professor, esse foi um tema inerente na pandemia, o cuidado com o outro. Seja naquele ato de passar álcool nas mãos ou de usar máscara, era um cuidado consigo mesmo, mas também com o outro. Percebemos que você, como pastor na sua igreja, por aquilo que desenvolveu no seu ministério, passou essa convicção para a igreja, mostrou a necessidade de que era um momento da igreja se abrir para cuidar de pessoas que enfrentavam dificuldades. Você consegue alinhar aquilo que vocês fizeram ali, como liderança na igreja, oferecendo amplo cuidado naquele momento, com o que estamos vivendo hoje, e o que está por vir nesse momento de pós-pandemia? Quando muitos estão, inclusive, debatendo sobre como vai ser a igreja nesse mundo pós pandemia.

Eu diria que é sempre um desafio, nunca é um processo natural. Quando o assunto é a virtude de Deus derramada no povo de Deus, para que esse povo seja a expressão Deus na terra, é sempre desafio. É, na verdade, um desafio de todo dia, não apenas em tempo de pandemia ou pós-pandemia. O desafio de que as pessoas criem a consciência do Evangelho, atentem para o fato de que estão o tempo todo vivendo para o cuidado, de que estamos o tempo todo vivendo em missão, para cuidar do outro, cuidar do próximo. Como se trata de um princípio, de uma virtude de Deus, é sempre um desafio manter uma comunidade cristã vivenciando isso de uma forma clara, profunda e consciente. Também é um desafio de todo dia, despertar a si mesmo para essa ação pastoral. Eu preciso orar a esse respeito porque como pastor, como líder da comunidade, facilmente posso me encantar pelas coisas que são secundárias.

Eu preciso resgatar isso todo dia dentro de mim e na minha comunidade. Um resgate da vida mais pautada em princípios fundamentais, que vão gerar plenitude de vida, coerentes com o Evangelho. Cuidar em primeiro lugar do meu coração, para depois despertar a comunidade exatamente para aquilo que ela é, para o que tem a ver com a sua identidade, com o seu jeito de ser no mundo. Porque a palavra cuidado não apenas define um ser humano, também define uma comunidade. O que define uma comunidade cristã não tem a ver com os programas, não tem a ver só com as músicas ou qualquer coisa que a gente queira dizer. Mas, a partir de um olhar bíblico, de um olhar que parte de Deus, o que define uma comunidade cristã de verdade, é o seu envolvimento com o cuidado. Cuidado, não pode ser apenas um projeto da igreja, da diaconia. Não existe igreja sem cuidado, não existe igreja sem pastoreio. E nesse sentido, pastoreio não é a vocação de um pastor, é a vocação de toda a comunidade cristã; um jeito de ser, de uma comunidade pastoral.

Pergunta – Interessante falar do cuidado porque também nos remete exatamente ao chamado de Abraão. Quando Deus o chama, Ele diz “em ti serão benditas as famílias da terra”. É justamente esse, um chamado para que essa geração, por assim dizer, filhos de Abraão, filhos da fé, sejam as pessoas que trarão a bênção de Deus no lugar onde estiverem, que é o cuidado perfeito. E você colocou muito bem, “se não existe cuidado, não existe Igreja”; existe qualquer outra coisa, existe um movimento, existe um encontrão de gente lá fazendo a mesma coisa, talvez cantando as mesmas músicas, ouvindo a mesma palavra, mas o que define a Igreja de Jesus é o modelo do próprio Jesus. E Jesus é a expressão máxima do cuidado. Baseado nisso, qual dica você daria para um jovem pastor para despertar a sua comunidade quanto a esse cuidado? Qual dica você daria para esse pastor, que talvez dissesse para você: “Eu quero fazer da minha igreja uma comunidade de cuidado”; que talvez perguntasse: “Como é que você fez isso?”

Antes de tudo, digo: isso é obra do Espírito. Digo isso para deixar claro, nada disso me pertence. É uma obra do Espírito de Deus. Não é “como você fez”, é sim uma tentativa de continuar, continuar, continuar e continuar permitindo Deus se mover. É interessante que, nas línguas bíblicas, a maioria dos verbos na Bíblia dão a ideia de continuidade. Tudo que o está acontecendo. Os imperativos bíblicos, são imperativos de continuidade. Assim, o desafio da continuidade é de não se perder na nossa identidade, não se perder com falsas promessas de alicerces que foram feitos e construídos por mãos humanas, mas, permanecer no paradigma de Jesus. Jesus precisa ser sempre o paradigma absoluto de uma comunidade de fé, porque Ele, afinal de contas, é o dono da Igreja. Ele diz que a Igreja é dele, a Igreja não é minha. E a Igreja dele caminha sempre no movimento do Espírito. O Espírito é o movimento que deve nos guiar.

Pergunta – Professor Flávio, o ministério de Cuidado Pastoral bíblico exige um conhecimento tanto do contexto teológico quanto do contexto sociocultural. Contudo, ainda é grande o número de líderes que insistem numa dicotomia: espiritualidade versus política, economia e cultura versus igreja local. Como romper com esse isolamento da Igreja e planejar ações que possam impactar positivamente o nosso mundo?

Eu acho que de alguma forma a gente já tocou em alguns pontos aqui sobre isso. A gente precisa ser conduzido pelo Espírito de Deus, que é movimento, mas, também é o Espírito que nos coloca com os pés firmados no chão da vida. Precisamos entender que, sim somos cidadãos do céu, mas com os pés na terra. Acho que nos falta essa percepção da relação entre Igreja e esses temas que você citou. Nossa vida na terra está relacionada com tudo isso. Por isso, a questão primeira talvez deva ser “como a gente se relaciona com essas coisas?”. Antes de tudo, precisa haver um entendimento mais claro de que nós somos chamados para uma relação com essas coisas a partir dos princípios do céu. Ou seja, gente do céu com os pés na terra, que vive na terra e que se relaciona com as questões da terra a partir dos valores do céu. É o que parece, para mim, a oração do Pai Nosso, quando Jesus nos ensina a pedir pelo Reino, a pedir pela vontade Dele, na terra como é no céu. Nessa frase tem um referencial, o referencial do cristão, do pastor, é o céu. Devemos buscar o referencial do céu para que permeie a terra.

O primeiro desafio é a gente redescobrir o nosso chamado e aprender a se relacionar com essas coisas a partir dos princípios eternos de Deus. Porque senão a Igreja se corrompe com política, se suja com projetos econômicos, ideológicos. A igreja deve se relacionar para influenciar, para ser luz, para ser profeta, para ter uma voz profética. Ela não toma partido porque o seu partido é o Reino de Deus. Não podemos abrir mão disso! Somos gente do céu, que vive na terra, até que Ele venha, até que seja dia perfeito e desfrutemos com Ele da glória eterna.

Quebrar a dicotomia é outro desafio, pois, todas essas coisas são questões também ligadas à nossa vocação, ligadas à nossa missão, desde que a gente entenda o chamado que é para expressar no mundo as virtudes Daquele que nos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz. E para que essa luz seja vista no nosso mundo de trevas.

Pergunta – Professor, então para encerrar, falando de cuidado pastoral, a gente não pode esquecer que a própria liderança precisa de um cuidado. Você na sua vivência pessoal, enfrentou um grande desafio que foi acompanhar sua esposa na luta contra o câncer e recentemente, o falecimento dela. Diante disso, eu gostaria de saber: A igreja foi esse lugar de cuidado e de refúgio para você e para suas filhas?

Muito boa sua pergunta, mas antes de falar o quanto a igreja representou para mim, quero enfatizar algo. Você começou falando sobre a necessidade de uma liderança que se permite ser cuidada. E aqui eu deixo um apelo, para que os pastores abandonem, de uma vez por todas, essa capa que foi colocada sobre eles, uma capa messiânica ou a capa da superpotência ou da prepotência em relação à vida. Nós, como homens de Deus, precisamos ser humildes o suficiente para que os nossos pés sejam lavados de vez em quando e para que as pessoas cuidem de nós. Para que as pessoas nos conheçam também a partir das nossas fraquezas. Não cabe mais, na minha perspectiva de vida, qualquer modelo pastoral que esteja acima das pessoas ou que se deixe levar por essa projeção humana de que um pastor ou uma pastora, é um super-homem ou uma supermulher.

Na minha opinião, isso procede do inferno, é uma tentativa diabólica contra a nossa própria vida, de acreditar que estamos acima do bem e do mal. Somos chamados para o cuidado, e isso não significa que a gente não precisa ser cuidado na mesma dimensão, ainda que isso cause, em certo momento, algum constrangimento na igreja. A Igreja precisa conhecer as nossas fragilidades. Estes três anos com a minha esposa foi uma faculdade para mim, onde pude aprender exatamente o que as pessoas aprendiam comigo. Puderam olhar, sem reservas, para aquilo que eu sou e aquilo que eu posso oferecer. Ou então, eu não tenho nada para dizer.

Necessário reconhecer o meu momento de vida, inclusive pelo momento que estou vivendo agora, que é um momento de luto. Significa dizer: aqui estou eu; esse sou eu com o que Deus me deu, com os meus dons, com os meus talentos, com as virtudes que Ele colocou no meu coração, mas também com a minha fragilidade. Fragilidade também é virtude. Se a gente pegar o exemplo de Jesus que encontrou como forma de virtude o esvaziamento, posso encontrar virtude na confissão da minha própria fragilidade. Acho que esse ponto é muito importante. Nós precisamos de pastores humanos. Se não fosse assim, Deus teria enviado os anjos para essa função pastoral. Que Deus nos ajude, para uma igreja pós-pandemia, que tenhamos pastores mais humanos e que sejam compreendidos na sua humanidade pelas suas comunidades de fé. Essa é a minha oração!

A minha segunda resposta é dizer que sim, eu fui extremamente bem cuidado pela minha comunidade. Minha comunidade me surpreendeu, não porque eu não esperasse isso dela, mas pela forma como foi, na dimensão que foi, no ritmo em que as coisas aconteceram. Eu quero deixar esse testemunho. Eu não fiquei um dia sequer sem receber pelo menos uma mensagem de alguém da minha igreja dizendo: “Estou orando por você”, “Estou orando por sua família”, “Vocês estão nos meus pensamentos”, “Vocês estão nas minhas orações”. Eu posso dizer, com toda certeza, não foi simplesmente um cuidado… Eu fui, extremamente cuidado! Eu senti, em vários momentos, sinais do amor de Deus sendo manifestados por meio de pessoas que se deixaram levar pelo Espírito de Deus. O movimento do qual já falamos, o movimento do Espírito que os levaram a estender a mão, a me abraçar, a levar comida na minha casa, cuidar das minhas filhas, e tantas outras atitudes, que só pode ser de gente do céu agindo na terra.

Referência: OLIVEIRA, Flávio Henrique. Cuidado pastoral da Igreja em tempos de dificuldades sociais. [Entrevista concedida a] Monica Carvalho Costa. Revista Práxis Missional, Londrina PR, ano 5, edição 9, junho de 2023. Disponível em: https://praxismissional.com.br/entrevista-com-o-professor-flavio-henrique-por-monica-carvalho/

Acesse também em formato podcast: https://open.spotify.com/episode/3O801hDqF5uQcb18x6ZzEK?si=56ee4a09d2084427&nd=1


Entrevistado: Professor Flávio Henrique é graduado em Teologia pela FTSA, com Mestrado e Doutorado pela PUC, na área de Bíblia. Docente na FTSA desde 2011, lecionando disciplinas de Antigo e Novo Testamento, Línguas Bíblicas, Exegese e Hermenêutica. Atualmente exercendo o cargo de diretor acadêmico. Pastor presbiteriano (IPB – Igreja Presbiteriana do Brasil) em Londrina – PR.

Entrevistadora: Mônica Carvalho Costa é jornalista e pastora da Igreja Presbiteriana Independente, graduada e pós-graduada em Teologia pela FTSA. Contato: monica@ftsa.edu.br