VENHA O TEU REINO, SEJA FEITA A TUA VONTADE: A MANIFESTAÇÃO DO REINO EM MATEUS | Por William L. Lane

Há certo consenso de que o reino de Deus é tema central no ensino e ministério de Jesus e que os Evangelhos, em diferentes graus e linguagem, ressaltam esse aspecto da mensagem de Jesus. Assim, Mateus logo introduz João Batista pregando: “Arrependei-vos, porque está próximo o Reino dos céus” (Mt 3.2, NVI), e, mais tarde, o próprio Jesus inicia o seu ministério com a mesma mensagem (Mt 4.17) e percorre a Galileia “pregando o evangelho do Reino” (Mt 4.23).

Os estudos têm apontado também o significado da mensagem de Jesus sobre o reino dentro do contexto do judaísmo do primeiro século da era cristã e a importância desse entendimento para a compreensão da missão cristã e suas implicações para a tarefa missionária da igreja. Isso se verifica na importância do tema do reino para a missiologia e, particularmente, a reflexão bíblica sobre a missão.

De acordo com essa reflexão, o conteúdo da mensagem do evangelho é a proclamação da vinda do reino de Deus e o convite ao arrependimento e fé. Porém, a mensagem do reino não consiste somente do anúncio de juízo final e vinda futura do reino. O reino já se manifesta na vida e ministério de Jesus e aguarda o seu cumprimento final no último dia.

Mas o que nem sempre esteve claro é como o reino de Cristo se manifesta depois de sua partida e até que ele venha. É a igreja como instituição a representação do reino hoje? Esse foi o entendimento da cristandade que tornou a organização, estrutura e hierarquia da igreja como única e legítima representação do reino. A igreja tem as chaves do reino, por isso, Cristo governa por meio da igreja. Numa perspectiva menos institucionalizada, a igreja como organismo vivo e dinâmico é a mediadora do reino. De outro modo, o reino pode ser entendido como a mensagem e ensino de Cristo, de modo que, onde quer que o evangelho de Cristo seja pregado e vivenciado ali está o reino.

A expressão “reino de Deus” ocorre 66 vezes no Novo Testamento, sendo que 52 apenas nos Evangelhos, e 5 delas em Mateus; e a expressão “reino dos céus”, exclusiva de Mateus, 31 vezes. Além disso, há diversas ocorrências de “reino” para se referir ao reino de Cristo. Contudo, apesar da significativa importância do termo para Mateus, não é o número de ocorrências da palavra que determina necessariamente sua importância teológica em Mateus, ou qualquer outro Evangelho. Sua importância se deve ao conteúdo de sentido dado pelo autor para o termo.

Neste artigo quero analisar a oração de Jesus em Mateus 6.9-15, particularmente a expressão “Venha o teu reino, seja feita a tua vontade” para entender o que significa, na perspectiva de Mateus, a vinda e manifestação do reino. A mesma oração com ligeira diferença é também citada por Lucas (11.2-4). Uma comparação dos dois registros mostra que a frase “seja feita a tua vontade assim no céu como na terra” não se encontra na versão de Lucas. Isso pode sugerir que a versão de Mateus intencionalmente destaca esse elemento da petição por causa da importância da relação entre o reino e a vontade de Deus. Na análise do sentido da frase para Mateus verifica-se ainda que Mateus apresenta pelo menos duas passagens sem paralelos nos demais Evangelhos que abordam a vontade de Deus (Mt 7.21-23; 21.28-32).

  1. A Oração do Senhor – Mateus 6.9-15

A oração do Senhor em Mateus 6 faz parte de um grupo de instruções do Sermão do Monte sobre esmolas (v. 1-4), oração (v. 5-14) e jejum (v. 16-18). Na oração dos versículos 9 a 13, há uma invocação (“Pai nosso que está nos céus”) e sete petições: 1. “Santificado seja o teu nome”; 2. “Venha o teu reino”; 3. “Seja feita a tua vontade”; 4. “Dá-nos hoje o pão nosso de cada dia”; 5. “Perdoa as nossas dívidas”; 6. “E não dos deixes cair em tentação”; 7. “Mas livra-nos do mal”.

As primeiras três petições dizem respeito à ação de Deus na história – seu nome, reino e vontade. Alguns sugerem que as primeiras três petições se referem a ações escatológicas, enquanto as últimas quatro, a situações do presente – o pão, o perdão, o livramento da tentação. Ainda que seja possível fazer essa distinção temporal entre as petições, elas estão interligadas e não devemos pensar nas três primeiras petições unicamente na perspectiva escatológica.

Outro modo de entender a diferença entre o primeiro e o segundo grupo de petições é no objeto principal das petições. Karl Barth (2002, p. 26-27) compara as petições da oração aos Dez Mandamentos. Assim como os primeiros quatro mandamentos tratam da glória de Deus, as primeiras três petições também se concentram em Deus, e assim como os cinco últimos mandamentos tratam da relação do ser humano com o seu próximo, as últimas petições tratam da vida humana. Pelas primeiras petições, nós nos colocamos ao lado de Deus para participar de seus desígnios e ações. As últimas petições pressupõem as primeiras. Segundo Barth, todos os nossos pedidos (pão, perdão, livramento) pressupõem que pedimos para participar da causa de Deus.

Apesar da diferença entres os dois grupos de petições, Barth insiste também que é preciso observar como há uma unidade entre as petições. Ainda que as necessidades humanas materiais e de salvação vêm depois da causa de Deus, não é uma questão opcional. As primeiras petições não existiriam se não fossem as últimas, as quais são tão indispensáveis quanto as primeiras. Não devemos supor que haja uma dialética entre a causa de Deus e a nossa. Ele conclui (2002, p. 29),

Portanto, seria um perigo omitir as últimas três petições, pois assim haveria, de um lado, uma esfera eclesiástica, teológica, metafísica, e, de outro, uma esfera voltada ao dinheiro, sexo, negócios e relacionamentos sociais. Haveria, então, dois compartimentos. Ora, queira ou não, há apenas um. Não há nada mais pernicioso do que a ilusão dos dois compartimentos […] nós oramos por ambos. Isso porque é Jesus Cristo que nos convida a orar com ele, porque nele essas duas causas são uma.

Olhando nessa perspectiva, a diferença entre as petições não é temporal. Mesmo a distinção entre a causa de Deus e a causa humana não impede de entendermos que ambas tratam de ações no presente. Isso tornará mais claro na análise do texto e na comparação com a oração de Lucas.

Conforme demonstra o quadro comparativo da oração, Lucas não tem uma expressão correspondente às petições 3 e 7:

No texto de Mateus, os verbos das primeiras três petições – Santificado seja, Venha, Seja feita – estão no imperativo da terceira pessoa e os pronomes na segunda pessoa (teu, tua). Hagner (1998, p. 148) sugere que o uso dessa forma verbal aponta para o envolvimento dos que oram nas respectivas ações. Os discípulos já participam do reino como seguidores de Jesus, porém, eles não realizam o reino com seu próprio esforço. Contudo, por meio da oração, eles expressam o compromisso de serem fiéis ao reino e de manifestarem a presença profética do reino.

Há um paralelismo entre as três primeiras petições de modo que é possível entender que o nome de Deus só é propriamente honrado quando seu reino e sua vontade são realizados na terra, assim como no céu. Assim, as três petições se referem à mesma realidade histórica redentora (Hagner, 1998, p. 149). Na oração pedimos para que o nome, ou seja, a pessoa de Deus, o seu reino e a sua vontade se manifestem.

A partir da quarta petição, os verbos estão no imperativo ou subjuntivo da segunda pessoa e os pronomes pessoais estão na primeira pessoa do plural (nos, nossas, nossos). Essa mudança indica também a mudança da natureza ou conteúdo do pedido. Oramos para que Deus dê pão, perdoe as dívidas, nos livre da tentação e do mal. A atenção se volta às necessidades humanas, à realidade do ser humano e suas relações. Isso inclui o seu sustento, a sua relação com outras pessoas na sociedade, e a relação com os perigos e ameaças no mundo.

Na oração o pedido para Deus atender às necessidades humanas está no contexto da manifestação do nome, do reino e da vontade de Deus. O inverso também é verdadeiro. A realização da vontade e do reino acontecem não ‘lá no céu’, mas aqui na terra como no céu. O reino se manifestou em Jesus Cristo e a oração é para que esse reino continue presente. Assim, o pão, o perdão e o livramento do mal são a materialidade da manifestação do reino.

Como coloca Barth (2002, p. 30),

Deus nos convida para nos dirigirmos a ele em oração enquanto entendemos que a causa dele e a nossa estão intimamente unidas, que a nossa causa é compreendida dentro da dele. Então, nos aproximamos como seres humanos e nos colocamos diante dele, dispostos a viver na totalidade dessas duas causas.

Mas se esse imbricamento das petições é notável pela estrutura semântica da oração, ainda nos chama a atenção a ausência de um paralelo da terceira petição (“seja feita a tua vontade”) de Mateus em Lucas. A frase é exclusiva de Mateus e isso reforça o paralelismo das três petições de modo a associar a santificação do nome de Deus e a vinda do reino à realização da vontade de Deus. O que Mateus quer dizer com isso? Será essa frase um elemento chave para entender a perspectiva de Mateus sobre a manifestação do reino? Isso é o que examinaremos em seguida.

  1. Seja feita a tua vontade

Em geral, as orações registradas na Bíblia estão em forma poética e uma das características básicas da poesia hebraica é o paralelismo de linhas poéticas. Esse paralelismo significa que a segunda ou terceira linhas complementam, contrastam, sintetizam ou desenvolvem a ideia da primeira linha. Um dos usos mais comuns desse recurso é o paralelismo sinonímico, em que a segunda linha expressa a mesma ideia, ainda que em outras palavras, da frase anterior. Há um paralelismo semântico, isto é, o sentido das frases são muito semelhantes e próximos.

Nessa oração, as três primeiras petições formam um paralelismo muito equilibrado. Há uma simetria na estrutura sintática das orações gramaticais no grego. As três seguem a mesma ordem de Verbo (santificado, venha, seja feita) + Artigo + Subs (nome, reino, vontade) + Pronome Pessoal (teu, teu, tua). As três frases têm o mesmo número de palavras e de elementos gramaticais. Esse equilíbrio não se repete nas demais petições. Isso certamente sugere intencionalidade. Há uma intenção deliberada de construir as frases desse modo. Gramaticalmente são frases simples e bem estruturadas com o objetivo de comunicar um sentido claro e coeso.

Desse modo, a terceira petição – “seja feita a tua vontade” – está em harmonia tanto em estrutura quanto em sentido com as duas petições anteriores. Esse tipo de paralelismo visa expandir ou explicar uma ideia usando outros termos. Como explicar o que é “santificar o teu nome”. A petição seguinte, lança luz afirmando algo semelhante. Santificar o nome de Deus é honrá-lo como Senhor, assim, a petição suplica para que o reino de Deus seja manifesto. E o que significa vir o reino? Se olharmos sob certa perspectiva escatológica, significa aguardar a vinda do reino de Deus no futuro. Mas, ainda que a oração contemple o governo absoluto de Deus, o pedido se refere à manifestação do reino aqui. A terceira petição esclarece ainda mais o que significa isso. O reino se manifesta onde ou sempre que a vontade de Deus é realizada. Assim, como afirma Houlden (1992, p. 361), a realização da vontade de Deus se refere ao propósito final de Deus, porém, de modo mais específico, aos imperativos morais contidos nos ensinos éticos em todo o Evangelho de Mateus.

Achtemeier, Green e Thompson (2001, p. 101-102) observam que o corpo principal do Sermão do Monte está estruturado em torno da lei e dos profetas (5.17; 7.12) e se preocupa com a “encarnação da vontade de Deus na vida do povo de Deus”. Jesus se posiciona debaixo da autoridade da Lei e como legítimo intérprete da vontade de Deus. Então, para Jesus, a vontade de Deus deve ser entendida como “Torá (Lei) viva”, como cumprimento da justiça de Deus. Segundo esses autores (2001, p. 93), as primeiras palavras de Jesus no Evangelho de Mateus demonstram a resolução de Jesus de “cumprir toda a justiça” (3.15). Os termos “cumprir” e “justiça” são programáticos para a narrativa de Mateus, de modo que para Jesus o que é justo e reto é cumprir a vontade de Deus. E as últimas palavras de Jesus no Evangelho, lembram os discípulos de que a ele foi dada toda a autoridade “nos céus e na terra” (28.18), por isso ele os envia a fazer discípulos ensinando-os a obedecer a tudo que ele ordenou (28.20). Jesus finaliza prometendo a sua presença todos os dias. A presença de Jesus e a submissão à vontade e justiça dele garantem a presença do reino “até o fim dos tempos”.

O reino de Deus se manifesta onde o seu nome é honrado e a sua vontade é realizada. Orar para que venha o reino é assumir também o compromisso de se sujeitar à vontade de Deus. Onde a vontade de Deus – sua justiça, as ordenanças de Jesus – é realizada, ali o reino se faz presente. A oração, então, é um pedido constante para que a vontade dele prevaleça, pois seu reino será manifesto e seu nome santificado.

Mas não é só nessa frase da terceira petição que Mateus se diferencia dos demais Evangelhos. Há duas outras passagens peculiares de Mateus que falam da “vontade do Pai”.

  1. A vontade do Pai que está no céu

A vontade de Deus tem um papel significativo no Evangelho de Mateus. Isso é percebido quando se comparam outras passagens paralelas de Mateus e os demais Evangelhos. Nessas passagens, a “vontade do Pai que está no céu” é particularmente mencionada no contexto de ensino sobre o reino. A passagem de Mateus 12.46-50, sobre quem são os irmãos e mãe de Jesus, encontra paralelo em Marcos (3.31-35) e Lucas (8.19-21). A parábola da ovelha perdida (Mateus 18.10-14) encontra-se também em Lucas (15.3-7). Além disso, há duas passagens exclusivas de Mateus em que a “vontade do Pai/pai” é tema central. Mateus 7.15-23, sobre a árvore e seus frutos, e Mateus 21.28-32, a parábola dos dois filhos, não têm paralelos nos outros Evangelhos.

Em Mateus 7.15-23, no final do Sermão do Monte, Jesus adverte os discípulos contra falsos profetas dizendo que por seus frutos os reconhecerão (7.16), e acrescenta, “Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor,’ entrará no Reino dos céus, mas apenas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus” (7.21). O uso da expressão “naquele dia” no v. 22 e as palavras “Afastem-se de mim vocês, que praticam o mal” (v. 23) sugerem o contexto do juízo final quando todos prestarão contas a Deus. Nesse sentido, “entrar no Reino dos céus” pode ser entendido como salvação eterna, ou seja, entrar no céu no dia do juízo final. Entretanto, Jesus não está ensinando os discípulos como entrar no céu. Mesmo os versículos anteriores sobre a porta estreita e a porta larga (Mt 7.13-14) não se referem à porta lá do céu, mas à porta e o caminho que leva à vida ou à perdição. Em ambos os casos, assim como todo o Sermão do Monte, Jesus está ensinando como viver o evangelho do reino aqui. Portanto, entrar no reino é cumprir a vontade de Deus enquanto vivemos aqui.

Em Mateus 21.38-42, Jesus conta a parábola do homem que tinha dois filhos e pediu a um que fosse trabalhar na lavoura. Este respondeu, “não quero” (21.29), mas depois mudou de ideia, e foi. O pai pediu a mesma coisa para o segundo filho, que lhe respondeu, “Sim, senhor!” Mas não foi. Jesus pergunta aos chefes dos sacerdotes e líderes religiosos que o ouviam, “Qual dos dois fez a vontade do pai?” (v. 31). Não há como não perceber a deliberada intertextualidade da “vontade” e “do pai” com a Oração do Senhor e outras passagens de Mateus. É interessante que neste capítulo 21, Mateus, Marcos e Lucas seguem basicamente a mesma sequência de acontecimentos depois da entrada de Jesus em Jerusalém. Mateus, porém, insere essa parábola entre o ensino de sua autoridade (21.23-27) e a parábola dos lavradores (21.33-36) obviamente para expor como os religiosos não seguia a vontade do pai.

Quem fez a vontade do pai foi o primeiro filho, aquele que disse “não quero”, mas foi. Jesus, então conclui, “Os publicanos e as prostitutas estão entrando antes de vocês no Reino de Deus. Porque João veio para lhes mostrar o caminho da justiça, e vocês não creram nele, mas os publicanos e prostitutas creram. E mesmo depois de verem isso, vocês não se arrependeram nem creram nele” (21.31-32). Veja que os publicanos e prostitutas “estão entrando” e “creram”, mas os religiosos “não creram” mesmo depois de “verem isso”. Ora, Jesus está falando não de coisas futuras, mas do que estava acontecendo. Entrar no reino é crer no “caminho da justiça”, é fazer a vontade do pai. Os religiosos conhecedores das Escrituras são o filho que dizem “Sim, senhor!” mas não obedecem nem seguem a ordem do Pai. Os publicanos e prostitutas são o filho que disse “Não quero”, mas, depois, foram, atenderam ao pedido do Pai. A vontade de Deus não se manifesta apenas nos grandes atos de salvação da história humana. A vontade de Deus se manifesta quando publicanos e prostitutas entram no reino.

Na passagem de Mateus 12.46-50 (Mc 3.31-35; Lc 8.19-21), enquanto Jesus ensinava, lhe avisam que sua mãe e irmãos estavam ali. Jesus responde, “Pois quem faz a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (v. 50). Novamente, encontramos ecos da Oração do Senhor na referência de “vontade”, “Pai” e “que está nos céus” (cf. Mt 6.9-10). Os dizeres de Marcos e Lucas denotam a mesma coisa, porém, com outras palavras. Marcos diz “Quem faz a vontade de Deus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (3.34). Lucas diz, “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a praticam” (8.21). Duas coisas podem ser concluídas. Primeiro, as palavras de Mateus são deliberadas para associá-las ao importante tema da vontade do Pai que está no céu como manifestação do reino. Segundo, a julgar pelas palavras de Lucas, “ouvir a palavra de Deus e praticá-la” equivale a “fazer a vontade de meu Pai”. Portanto, quando oramos “seja feita a tua vontade”, participamos ativamente da realização da vontade de Deus ouvindo e praticando os ensinos de Jesus.

Na parábola da ovelha perdida (Mt 18.10-14; Lc 15.3-7), novamente, as palavras de Mateus refletem clara alusão à Oração do Senhor. No contexto de Lucas, a parábola é contada em resposa à acusação dos fariseus e mestres da lei de que Jesus comia com pecadores (15.2). Jesus conta a parábola para dizer que a ovelha encontrada trará muita alegria ao seu dono e que “haverá mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não precisam de arrepender-se” (v. 7). Além disso, a parábola é seguida das parábolas da moeda perdida e do filho perdido (ou pródigo).

Em Mateus a parábola está no contexto da discussão dos discípulos sobre quem é o maior no reino. Jesus responde tomando uma criança e advertindo os discípulos a se tornarem como aquela criança para entrar no reino. Em seguida, os admoesta a não desprezar “um só destes pequeninos”, pois o Filho do homem veio para salvar o “perdido” (Mt 18.10). Então, Jesus conta de forma abreviada a parábola da ovelha perdida e conclui, “Da mesma forma, o Pai de vocês, que está no céu, não quer que nenhum destes pequeninos se perca” (18.14). No grego, a associação com Mateus 6.10 é muito clara, pois diz, literalmente, “assim, não é a vontade (diante) do Pai que está nos céus”. Mais uma vez Mateus relaciona “vontade”, “Pai” e “que está nos céus” de forma peculiar em uma passagem com paralelo em outro Evangelho. Orar para que venha o reino e a vontade de Deus seja feita implica em se envolver ativamente na busca da ovelha perdida para que nenhum desses pequeninos se perca.

Além dessas passagens, a oração de Jesus no Getsêmani na versão de Mateus faz uma ligação deliberada com as palavras Mateus 6.10 (“Seja feita a tua vontade”). Jesus se afasta dos discípulos e sai para orar a sós e diz, “Meu Pai, se for possível, afasta de mim este cálice; contudo, não seja como eu quero, mas sim como tu queres” (Mt 26.39). Com ligeiras diferenças na construção da frase, Marcos e Lucas registram o mesmo clamor de Jesus (Mc 14.36; Lc 22.42). Em seguida, Jesus volta para os discípulos e os encontra dormindo. Jesus os exorta mais uma vez a orar e vigiar, depois, retira-se novamente para orar. Marcos e Lucas não registram as palavras da segunda oração de Jesus. Marcos apenas diz que Jesus orou “repetindo as mesmas palavras” (Mc 14.39). Lucas diz que ele orou “ainda mais intensamente; e o seu suor era como gotas de sangue que caíam no chão” (Lc 22.44). Mateus, contudo, registra as palavras daquela oração de Jesus: “Pai, se não for possível afastar de mim este cálice sem que eu beba, faça-se a tua vontade” (Mt 26.42). A última parte contém exatamente a mesma frase da oração de Mateus 6.10 (“seja feita a tua vontade”; gr. genetheto to telemá sou). Apenas Mateus registra isso, como dizendo que Jesus se submete à vontade de Deus, o reino é manifesto, o nome do Pai foi santificado. O reino só se manifesta mediante a submissão de Jesus à vontade do Pai.

Para Mateus, o reino se manifesta onde e quando a vontade de Deus é realizada, e a vontade de Deus está expressa nos ensinos de Jesus. Em geral, contudo, a compreensão que muitos cristãos têm da vontade de Deus é que Deus realiza o seu propósito independente do querer do ser humano e que todas as coisas acontecem de acordo com o seu propósito. Nesse sentido, o papel do ser humano é passivo. Temos de aceitar a vontade de Deus. Ainda que esse seja um aspecto do ensino bíblico sobre os propósitos de Deus (Pv 16.1; Rm 8.28), nem sempre damos a importância na realização ativa da vontade de Deus e de entender que à medida que obedecemos “a tudo que eu lhes ordenei” (Mt 28.20), cumprimos e manifestamos a vontade de Deus, consequentemente, anunciamos a chegada do reino e santificamos, ou honramos, o nome de Deus.

O reino se manifesta onde o nome e a vontade de Deus se manifestam. Como igreja, como seguidores de Jesus, proclamamos o reino não só com palavras, mas com ações que demonstrem a vontade de Deus. Na oração do Senhor, Jesus nos ensina a pedir pão, perdão e livramento, aparentemente, elementos básicos de uma vida comunitária.

Conclusão

O “Pai Nosso”, como normalmente nos referimos à Oração do Senhor (Mt 6.9-13), tem hoje o uso principalmente litúrgico e, consequentemente, é desprezado por boa parte de comunidades que rejeitam formas litúrgicas mais solenes. Nessas comunidades recitar o Pai Nosso é uma forma muito tradicional e pouco contemporânea de culto. No entanto, a oração deve ser, de fato, feita em comunidade, pois a fazemos na primeira pessoa do plural “Pai nosso”, “dá-nos nosso pão”, “perdoa-nos nossas dívidas”. Mas é verdade que o modo como ela é repetida na liturgia cristã a afastou do seu sentido missional. Não pensamos nessa oração como uma oração missionária e, muito menos, como uma oração que remonta à integralidade da missão. Mas se atentarmos para as suas palavras e o contexto de Mateus, não vamos conseguir orar com essas palavras sem nos ver chamados à missão, ao serviço do reino de Deus.

A Oração do Senhor nos convida participar do reino e da realização da vontade de Deus. Conforme vimos, em Mateus a vontade de Deus significa não só que Deus está soberanamente realizando seu propósito em Cristo e no universo, mas também que os que creem no evangelho do reino fazem a vontade de Deus, isto é, cumprem, obedecem, seguem o caminho, “do Pai que está no céu”.

A Oração do Senhor também une a esfera do nome, reino e vontade de Deus com a esfera da vida humana, o pão, o perdão, o livramento. A oração reflete uma espiritualidade que não divide o céu e a terra, mas espera e deseja que a vontade de Deus seja feita no céu como na terra, isto é, do mesmo modo que é feito no céu é realizada na terra, ou tanto no céu quanto na terra, no sentido de totalidade e plenitude.

A Oração do Senhor tem também caráter escatológico, pois pressupõe, naturalmente, que o nome, reino e vontade de Deus não estão absoluta e finalmente manifestados, pois a tentação e o mal ainda nos ameaçam. Por isso a oração termina “porque teu é o Reino, o poder e a glória para sempre”.

Portanto, se o alvo da missão é a glória e o reino de Deus e a atividade missionária se dirige ao propósito final de Deus para o mundo e o seu reino eterno (Bavinck 1960, p. 158), então a Oração do Senhor é essencialmente missional.

Referências bibliográficas

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HAGNER, Donald A. Matthew 1-13. Word Biblical Commentary. Vol. 33A. Waco, TX: Word Books, 1998.

HOULDEN, J. L. Lord’s Prayer. In: FREEDMAN, David N. (Org.). The Anchor Bible Dictionary. Vol. 4. New York: Doubleday, 1992, pp. 356-62.

 

Sobre o autor

William L. Lane é  Doutor em Teologia pela Escola Superior de Teologia, EST. Professor da Faculdade Teológica Sul Americana.

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