06 jun UM OLHAR SOBRE A ATUAL CRISE DE REFUGIADOS | Por Jairo de Oliveira
Abdu Ali deixou a cidade de Racca na Síria na companhia de seus dois irmãos, Youssef e Mohammad, todos menores de idade. O destino deles foi o campo de refugiados, Zaatari, na Jordânia. Após percorrerem todo o trajeto de carro, eles se juntaram a outros 80 mil refugiados que fazem de Zaatari o segundo maior campo de refugiados do mundo. Abdu Ali deixou do outro lado da fronteira seus pais e outros cinco irmãos. Lamentavelmente, seus pais não possuíam recursos necessários para financiarem a viagem de toda a família e, por isso, enviaram para fora do país apenas os filhos mais velhos.
Oito meses após a sua chegada em território jordaniano, Abdu Ali participou de um acampamento de adolescentes organizado por cristãos locais. Lá ele ouviu a mensagem do evangelho pela primeira vez em sua língua materna. O Senhor lhe abriu a porta da fé e ele abraçou a oportunidade de experimentar o milagre do novo nascimento. Já como discípulo de Jesus, no dia seu batismo, Abdu Ali compartilhou o seguinte testemunho com a sua nova família na fé: “Dou graças a Deus pela guerra na Síria. Não fosse a situação que me forçou a deixar o meu país, talvez eu jamais tivesse tido a oportunidade de ouvir o evangelho”.
Uma crise sem igual
Vivemos em um momento histórico no que diz respeito à crise migratória. Os números que contabilizam pessoas deslocadas em todo o mundo revelam uma crise sem precedentes. De acordo com os dados mais recentes publicado pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), a dispersão de pessoas atingiu a marca de 68,5 milhões de indivíduos deslocados à força em todo o mundo (Acnur, 2019-a). A organização cristã World Relief (2019) descreve a atual crise migratória como “a maior e mais complexa crise humanitária da nossa geração”.
É preciso compreendermos que estamos diante de um problema extremamente complexo. Lamentavelmente, os sinais indicam que a crise não será resolvida com facilidade ou rapidez. A tendência é que esta catástrofe migratória seja uma realidade que continuará afetando milhões de vidas nos próximos anos e décadas. O que reforça esta análise é que o número de pessoas deslocadas à força é crescente. Segundo os relatórios do ACNUR: “Ao longo das duas últimas décadas, a população global de pessoas deslocadas forçosamente cresceu substancialmente, de 33,9 milhões em 1997 para 65,6 milhões em 2016, e permanece em um nível recorde” (UNHCR, 2019).
Gente de carne e osso
À medida que analisamos o estado atual da crise migratória e os números que a acompanham, devemos ter em mente que estamos lidando com bem mais do que com estatísticas. A crise engloba pessoas reais, gente de carne e osso, algumas das mais vulneráveis do mundo. Homens, mulheres e crianças que deixaram as suas casas por diferentes razões e foram deslocadas em seus próprios países ou espalhadas pelo mundo, como Abdu Ali e os seus irmãos.
Quando pensamos na extensão da crise migratória e consideramos as circunstâncias que afetam as milhões de pessoas deslocadas, a tendência é ficarmos perplexos. Contudo, precisamos cuidar para não perdemos a capacidade de nos preocuparmos com os indivíduos impactados. O fato é que cada vida é importante para Deus. Cada pessoa tem o seu valor e cada história de vida pode ser transformada pelo Eterno Deus, que usa a Sua Igreja para expressar amor ao mundo. Também, não devemos minimizar a nossa participação diante de um desafio tão grande. Jesus nos convoca para seguirmos o seu chamado a fim de fazermos a diferença na vida daqueles que “andam desgarrados e errantes como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9.36).
Dura realidade
Um dos destinos mais desejados pelos refugiados de todo o mundo tem sido o continente europeu. Os refugiados do Oriente Médio e do Norte da África conseguem chegar à Europa, principalmente pagando altas somas de dinheiro aos atravessadores que os enviam através do Mediterrâneo em barcos e balsas. O exílio de refugiados para a Europa através do Mediterrâneo tem produzido um alto custo em termos de vidas humanas, como destaca o relatório da ACNUR (2019-b): “Desde o início de 2017, acredita-se que mais de 2.700 pessoas morreram ou desapareceram ao cruzarem o Mar Mediterrâneo para chegarem à Europa”.
Os atravessadores utilizam duas rotas principais para enviarem os refugiados pelo Mediterrâneo para a Europa: 1) o Mediterrâneo Oriental (da Turquia à Grécia), e 2) o Mediterrâneo Central (do norte da África à Itália e Malta). Ambas as rotas são extremamente perigosas. Frequentemente, a Organização Internacional para as Migrações (OIM) relata naufrágios envolvendo refugiados que morrem atravessando o Mediterrâneo em sua tentativa de escapar da guerra, violência, perseguição e violações dos direitos humanos.
Embora os refugiados entrem na Europa principalmente pela Grécia, Itália e Malta, muitos deles não permanecem nesses países. Eles geralmente procuram países europeus onde possam ter acesso a melhores oportunidades para reconstruir suas vidas. Muitos desejam se estabelecer na Alemanha em função da política pró-refugiados e de sua forte economia (entre as cinco principais economias do mundo). O desafio é que, para chegar à Alemanha, eles precisam atravessar outros países europeus que, às vezes, fecham suas fronteiras e não permitem que os refugiados cruzem o seu território. Em muitos casos, eles são deportados ou enviados para centros de detenção ou campos de refugiados.
A base para o nosso envolvimento
Por mais desconforto que a crise migratória possa nos causar, seja por perplexidade, desconfiança ou medo, como cristãos encontramos nas Escrituras Sagradas uma base bíblica sólida para oferecermos acolhimento ao refugiado.
A Bíblia ensina que Deus ama o estrangeiro (Dt 10.18) e, como consequência, prescreve ao Seu povo um tratamento amoroso ao que peregrina em sua terra, “Portanto, amareis o estrangeiro” (Dt 10.19). De maneira prática, no Antigo Testamento, o povo era instruído a tratar o estrangeiro da mesma forma que tratava seus compatriotas: “Tratem o estrangeiro que peregrina entre vocês como tratam quem é natural da terra; amem o estrangeiro como amam a vocês mesmos” (Lv 19.34).
Deus ama o estrangeiro porque Ele é imparcial em relação às pessoas, não é preconceituoso e ama todo ser humano sem distinção. Deus ensinou este aspecto de Sua natureza a Pedro através da visão que recebeu na cidade de Jope. Consequentemente, Pedro declarou: “Reconheço, por verdade, que Deus não faz acepção de pessoas” (At 10.34-35).
Na leitura do Pentateuco, fica bem claro que os israelitas deveriam lembrar de sua histórica condição de peregrinos a fim de demonstrar empatia com os estrangeiros vivendo entre eles: “Também não oprimirás o forasteiro; pois vós conheceis o coração do forasteiro, visto que fostes forasteiros na terra do Egito” (Ex 23.9).
É importante lembrar que os israelitas não foram deslocados apenas quando se tornaram escravos no Egito. Em diferentes épocas de sua história, eles tiveram a triste experiência de deixar a própria terra tornando-se peregrinos em outra nação, como na ocasião em que foram levados cativos para a Babilônia e lá permaneceram por 70 anos: “Os que escaparam da espada, a esses levou ele para a Babilônia, onde se tornaram seus servos e de seus filhos, até ao tempo do reino da Pérsia” (2Cr 36.20). Enquanto estavam espalhados, eles experimentaram constante opressão e intensa saudade de sua terra natal: “Às margens dos rios da Babilônia, nós nos assentávamos e chorávamos, lembrando-nos de Sião” (Sl 137.1).
Curiosamente, as Escrituras descrevem o cristão como um peregrino e forasteiro neste mundo (1Pe 2.11). Esta figura de linguagem é utilizada para ilustrar a nossa condição de temporariedade nesta vida. Deste modo, como peregrinos e forasteiros, o desejo de Deus é que enquanto aguardamos a nossa morada definitiva, tenhamos compaixão daqueles que peregrinam entre nós e necessitam das nossas manifestações poderosas em obras e palavras (Lc 24.19).
Deus conduz a história
Apesar de se tratar de uma catástrofe humanitária, precisamos considerar que há um Deus que conduz a história e que, portanto, esses movimentos de pessoas não são acidentais. A Palavra de Deus nos ensina que, em relação a toda a humanidade, Deus está no controle de seus tempos e localização, a fim de permitir que eles se relacionem com Ele: “E de um só fez toda a geração dos homens para habitar sobre toda a face da terra, determinando os tempos já dantes ordenados e os limites da sua habitação, para que buscassem ao Senhor, se, porventura, tateando, o pudessem achar, ainda que não está longe de cada um de nós” (At 17.26-27).
A atual crise de refugiados carrega consigo um aspecto estratégico. Ela tem dispersado pessoas que costumavam viver isoladas da fé cristã e as aproximado do evangelho. Exemplificando, o documento de Tendências Globais da ACNUR revela que países muçulmanos como a República Árabe da Síria, Afeganistão e Somália estão no centro da atual crise migratória. Eles estão entre os países que mais produzem refugiados. Portanto, a maioria das pessoas que está sendo dispersa ao redor do mundo vem de países muçulmanos nos quais não há liberdade religiosa. No entanto, essas pessoas estão se movendo para nações da Europa e da América do Norte, por exemplo, onde a liberdade religiosa é um direito fundamental. Ali estão tendo a liberdade de continuar praticando o Islã ao mesmo tempo em que são expostas à fé cristã e podem aprender muito mais sobre Jesus do que em seus países de origem. Logo, ao examinarmos os dados que descrevem a realidade dos refugiados em nossos dias, fica claro que a atual crise migratória representa, por outro lado, uma oportunidade para a Igreja cumprir a Grande Comissão proposta por Jesus em Mateus 28.19: “Portanto, ide, ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”.
Deus continua conduzindo a história, mesmo nos momentos mais desafiadores. A Trindade está trabalhando através da Igreja e realizando a Sua obra em meio aos movimentos de diáspora. As oportunidades são imensas. Como comenta Brian Hébert (2019): “As missões à diáspora oferecem oportunidades para alcançar povos de países de acesso fechado sem a necessária aprovação de governos estrangeiros. Missões através da diáspora mobilizam pessoas que têm conexões naturais com países de acesso fechado”.
Conclusão
Considerando os milhões de refugiados que vivem dispersos, como seguidores de Jesus precisamos ter em mente a nossa identidade e posição neste mundo. Como pessoas que encontraram refúgio em Cristo e se tornaram concidadãos do Reino de Deus, devemos nos identificar com aqueles que estão no exílio e recebê-los no lugar onde Deus nos deu como residência temporária.
Que o nosso esforço venha produzir experiências semelhantes à de Abdu Ali que, em meio ao sofrimento, não encontrou apenas um lugar de refúgio em uma terra estranha, mas uma oportunidade de nova vida em Cristo Jesus.
Referências bibliográficas
ACNUR. Dados sobre o Refúgio. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/>. Acesso em 3 de abril de 2019.
HÉBERT, Jacques. The ‘With’ of Diaspora Missiology: The Impact of Kinship, Honor, and Hospitality on the Future of Missionary Training, Sending, and Partnership. Disponível em: <https://nextmove.net/uploads/Kinnship-Bridging-hebert.pdf>. Acesso em 10 de março de 2019.
UNHCR. Europe Situation. Disponível em: <http://www.unhcr.org/en-us/europe-emergency.html>. Acesso em 3 de abril de 2019-a.
___________. Global Trend. Disponível em: < http://www.unhcr.org/5943e8a34.pdf>. Acesso em 4 de abril de 2019-b.
World Relief The Refugee Crisis. Disponível em: <https://www.worldrelief.org/refugee-crisis>. Acesso em 4 de abril de 2019.
Sobre o autor
Jairo de Oliveira é Bacharel em teologia pela Faculdade Teológica Sul Americana (FTSA), mestre em estudos islâmicos e doutorando em estudos interculturais pela Columbia International University (CIU).
Contato com o autor: co*****@ja*************.br