O sentido da vida no cenário público brasileiro | Por Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

Introdução

O “sentido da vida” é um tema que voltou à discussão filosófica e teológica neste século, após algumas décadas de afastamento do cenário das principais discussões intelectuais. A principal razão para este retorno está exatamente na ausência de sentido na contemporaneidade, dominada como ela está pelos interesses e lógicas do lucro, da acumulação, do individualismo e do consumismo; bem como pela lógica da tecnociência que reduz o humano ao mundo programado das estruturas fisiológicas. Já no final do século passado, um filósofo francês, estudioso do Cristianismo, apontava essa ausência de “sentido da vida” nas sociedades atuais, como fruto da ignorância pública sobre o que é a vida e o que é ser uma pessoa, um ser humano:

[…] atualmente, em uma época em que a biologia alcançou seu progresso mais incisivo, uma crescente ignorância se desenvolve em relação ao que a vida realmente é – e isto, muito além de envolver apenas a biologia, esta ignorância se estende ao campo todo do saber científico, que, graças especialmente ao culto a ele prestado, acaba por infectar a mente pública como um todo. Neste caso, ocorreria o fato de que – o espírito de nossos tempos, o espírito moderno e, assim, cada pessoa determinada por ele – saberia menos do que em qualquer época o que é a vida, o que é ser uma pessoa. E visto que aqui isto não pode ser uma questão de mera hipótese, devemos fazer esta linha de raciocínio avançar a ponto de abranger não só o conhecimento científico de nossa era, mas também a sua ideologia coletiva (e, até certo ponto, popular). (Henry, 2003, p. 36)

Concordando com o diagnóstico de Henry, meu objetivo nesta fala é oferecer um breve diagnóstico dessa ignorância no cenário público brasileiro contemporâneo e uma proposta de como nós, cristãs e cristãos, poderíamos construir sentido e dar testemunho da verdadeira vida, que é o Senhor Jesus Cristo.

 

1. O público na construção do sentido da vida

No texto citado de Henry, ele destaca dois elementos públicos que demonstram a ausência de conhecimento sobre a vida – a ciência e a ideologia – que ele sintetiza com a expressão “espírito moderno”. Podemos evocar outro estudioso europeu, lido e relido há tempos no Brasil, inclusive no cenário teológico, para entender de modo mais concreto como funciona esse “espírito moderno” evocado por Henry. Esse pensador é o sociólogo e filósofo Jürgen Habermas, com quem dialogo há mais de vinte anos. Segundo Habermas, o que caracteriza a modernidade, do ponto de vista do sentido, é o que ele chama de “colonização do mundo da vida pelo sistema”.[1] Em uma série de artigos que foram publicados primeiro na Práxis Evangélica (entre 2002-2004) e, mais tarde, em meu livro Metodologia Teológica (2018), apresentei minha releitura teológica da análise de Habermas.

A “colonização” do mundo da vida pelo sistema significa basicamente o seguinte: o modo como as pessoas se relacionam umas com as outras e como elas constroem sentido – no cotidiano da vida social – tem sido dominado no mundo moderno pelas lógicas que regem o funcionamento das macroinstituições sociais contemporâneas. Que instituições e lógicas são essas? A mais poderosa é o Mercado, cuja lógica é a do dinheiro, que opera em função da acumulação de capital e exclusão de empresas e pessoas que não conseguem seguir as “leis do mercado”.[2] A segunda é o Estado, cuja lógica é o poder, que opera em função da conquista do governo e da classificação das pessoas em função de sua visão política, ou ideologia.[3] A terceira é a Ciência, cuja lógica é a técnica, que opera em função da especialização do saber e da despersonalização do humano.[4] A quarta é a Mídia, cuja lógica é a difusão de informação, que opera em função da massificação e da superficialização do conhecimento.[5]

O efeito cumulativo dessas lógicas sistêmicas operando no dia a dia das pessoas é basicamente o seguinte: (a) as relações interpessoais se tornam cada vez menos pessoais e, consequentemente, cada vez mais dominadas pelo resultado útil que podemos conseguir; (b) a vida cotidiana se torna cada vez mais dominada pelo individualismo e pelo consumismo (este, o outro lado da moeda da acumulação do capital); (c) a cidadania se resume à busca interesseira de direitos e é governada pela competitividade e exclusão da diferença;  e (d) as religiões, inclusive a cristã, tornam-se meios para legitimar o funcionamento das lógicas sistêmicas, reforçando, no cotidiano pessoal, o individualismo e o consumismo, de um lado, a ignorância e o preconceito, de outro.

Quando olhamos para o cenário público brasileiro contemporâneo, podemos ver essas lógicas em operação, cuja consequência mais evidente é a atual polarização da dimensão pública da vida e sua redução ao combate ideológico e partidário. O povo brasileiro, há muito, equivocadamente considera que o Estado é o agente de transformação social e de construção de justiça. Hoje em dia, esse equívoco alcançou graus extremos, ao ponto de o sentido da vida passar a ser definido por instituições e lógicas que não têm legitimidade para realizar essa importante função da vida humana em sociedade. Quando o sentido da vida é assim construído, o resultado não pode ser outro senão o aumento da ignorância, da incapacidade e da incompetência para viver bem. O aumento do egoísmo, da intolerância, do moralismo e de todo tipo de fundamentalismo excludente. E quando voltamos o foco para as igrejas cristãs, é preciso dizer em claro e bom tom: as igrejas evangélicas brasileiras contemporâneas, em sua imensa e esmagadora maioria, desaprenderam a viver e impedem que o saber viver em Cristo seja conhecido publicamente em nosso país. As comunidades e suas lideranças, especialmente as suas lideranças pastorais, não conseguem dar testemunho verdadeiro de Cristo porque estão conformadas com o presente século, construindo o sentido da vida cristã a partir das lógicas do mundo pecaminoso em que vivemos.

Em termos mais tipicamente teológicos: somos parte do problema porque não mais conhecemos a Cristo como o nosso “caminho, verdade e vida”. Como podemos deixar de ser parte do problema e nos tornarmos parte da solução?

 

2. Uma fé pública: Jesus Cristo, caminho, verdade e vida

Nós nos tornaremos parte da solução quando nossa vida, privada e pública, for determinada pela vida de Jesus Cristo. Quando nossa atuação pública na construção do sentido da vida for regida pela lógica do Evangelho e não mais pelas lógicas sistêmicas do mundo contemporâneo. Nós nos tornaremos parte da solução quando deixarmos de ter como foco de nosso pensamento e ação o sucesso político-econômico, a competição ideológica e o moralismo intolerante que exclui os pecadores do acesso ao Evangelho de nosso Senhor Jesus. Tentarei traduzir este prognóstico em sete teses teológicas públicas que descrevem como trilhar o caminho de Jesus, que é a verdade e a vida:

2.1. Jesus é o caminho da verdade e da vida e somente seguindo em seu caminho poderemos encontrar a verdade e a vida;

2.2. O caminho de Jesus é o caminho da cruz, sem a qual não há ressurreição, não há conversão, não há poder do Espírito, não há proclamação do Evangelho. Precisamos ouvir Lutero novamente, que propôs a teologia crucis no lugar da teologia gloriae;

2.3. O caminho de Jesus, que revela a verdade e a vida, é o caminho do amor ao pecador, do amor de Deus ao mundo, tão amplo e radical que o Pai enviou seu Filho para salvar todas as pessoas pecadoras e mostrar um modo de viver que transcende todos os critérios, valores e lógicas mundanas;

2.4. O caminho de Jesus é o caminho da fidelidade radical e exclusiva a Deus, que torna inoperantes todas as demais lógicas e compromissos constituídos pelo mundo e suas instituições e, em especial, anula todas as formas de moralismo, prosperidade e intolerância construídas pela religião em geral e pelas igrejas que seguem o caminho do Saulo fariseu e não o do Paulo apóstolo;

2.5. O caminho de Jesus é o caminho da resistência aos valores, saberes, ideologias e lógicas mundanas e religiosas, não mediante o moralismo ou a ética legalista, mas mediante a renovação da nossa mente, dos nossos saberes, dos nossos valores, da nossa teologia pelo Espírito, que é o amor de Deus derramado em nossos corações e que torna louca a sabedoria do mundo e nos possibilita viver de acordo com a sabedoria e o frágil poder de Deus;

2.6. O caminho de Jesus é o caminho do testemunho autêntico e inalterado do Evangelho da Cruz, manifesto primariamente em nossa vida cotidiana como vasos frágeis, pessoas enviadas por Deus como cordeiros em meio aos lobos, e, a partir de nosso testemunho de vida, comunicado na pregação do Evangelho que é o poder de Deus para a salvação de quem aceita o chamado para ser fiel a Deus, testemunho pessoal e verbal realizado no poder do Espírito que atua em nossa fraqueza humana, mantendo-a como fraqueza, a fim de que a excelência do poder seja de Deus e não nossa;

2.7. O caminho de Jesus é mapeado por lógicas anti-mundanas: contra a lógica do dinheiro (acumulação e exclusão), a lógica da partilha e da inclusão, que se concretiza no testemunho amoroso ao mundo em busca de todos os pecadores; contra a lógica do poder (conquista e classificação), a lógica do serviço e do reconhecimento que todas as pessoas são pecadoras e, por isso mesmos, todas são amadas por Deus que as deseja salvar, especialmente aquelas que pensam, como os antigos fariseus, que já são salvas; contra a lógica da técnica (especialização e despersonalização), a lógica da sabedoria e da humanização que coloca a pessoa amada por Deus como valor superior aos valores do dinheiro, do poder, do saber e da informação; que coloca o conhecimento da vida em sua plenitude em oposição à ignorância criada pela sabedoria deste século; contra a lógica da informação (massificação e superficialização), a lógica do discernimento que faz atuar como o bom pastor que cuida de cada ovelha e nos torna cheios do pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo, para que possamos viver de modo digno do Senhor e para a sua glória.

 

Conclusão

Seríamos infiéis ao caminho do Messias, porém, se o interpretássemos e vivêssemos exclusivamente como uma “religião”. A construção cristocentricamente teológica do sentido da vida não pode ser reduzida ao diálogo interno da doutrina e da reflexão teológicas. Ela se alimenta do diálogo com todas as demais formas “mundivitais” de construção de sentido: as artes, a literatura, o cinema, a TV[1], o senso comum esclarecido, a moralidade – as quais, por sua vez, juntamente com a teologia, podem reencantar o sistema colonizador e torná-lo inoperante, situando-o em seu lugar próprio, que é o de servir ao mundo-da-vida e, assim, servir também ao Evangelho da cruz do Messias.

O sentido da vida é, paradoxalmente, constituído a partir do sentido da morte – da morte do Deus-Filho na cruz. Nossa vocação teológica é a vocação apostólica de Paulo, que trilhou de modo exemplar o caminho de Jesus: “Mas o que, para mim, era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo. Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo e ser achado nele, não tendo justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé; para o conhecer, e o poder da sua ressurreição, e a comunhão dos seus sofrimentos, conformando-me com ele na sua morte; para, de algum modo, alcançar a ressurreição dentre os mortos” (Fp 3:7-11).

 

[1] É claro que, no caso das comunicações oriundas do mundo-da-vida, precisamos discernir as que são “autênticas” das que são fruto da banalização do Mercado e demais instituições sistêmicas.

[1] A obra principal em que Habermas ofereceu este diagnóstico é a sua obra clássica Teoria do Agir Comunicativo (2 vols.), da década de 1970, publicada no Brasil apenas recentemente pela Editora Martins Fontes, em 2012.

[2] A lógica do Mercado é radicalmente excludente: transforma tudo em custo ou lucro e reduz o ser humano a uma peça na engrenagem do funcionamento da economia. Para se manter em operação, o Mercado necessita excluir do emprego e do consumo uma porcentagem significativa da população e se aliar ao Estado para que as leis legitimem a dominação e a exclusão econômicas.

[3] O estado, que deveria servir à cidadania, ao contrário, serve-se dos cidadãos e cidadãs, tornando-se um mero arrecadador de impostos sem prestação de serviços, uma fonte de benefícios ilegais para seus sujeitos e agentes, e um impotente legitimador das leis do Mercado (vide reforma trabalhista, reforma da previdência, etc.), que garante a acumulação e concentração do capital nas mãos de poucos.

[4] A tecnociência contemporânea é a grande promotora do naturalismo como explicação da vida, que reduz o ser humano a simples peça na grande máquina que é a natureza, esta também despersonalizada e reduzida a objeto de pesquisa e exploração. O ser humano, no naturalismo, é mero feixe de impulsos elétricos em um meio químico-celular.

[5] A ignorância travestida de conhecimento tem sua forma climática no Twitter, que permite pouco mais de 200 caracteres nas “falas” e nos likes do Facebook, que reduzem a pessoa a um perfil narcísico, que busca views e likes em profusão. Os “quinze minutos de fama” da TV agora são os 15 segundos de fama nos memes das redes (anti)sociais.

 

Referências bibliográficas

HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo. Vols. I e II. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
HENRY, Michel. I Am the Truth. Toward a Philosophy of Christianity. Stanford: Stanford University Press, 2003.
ZABATIERO, Júlio P. T. M. Metodologia teológica. São Paulo: Fonte Editorial, 2018.

 

Sobre o autor

Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero é Doutor em Teologia pela EST/São Leopoldo-RS, além de Professor e atual Coordenador do Mestrado Profissional da Faculdade Teológica Sul Americana.
Contato com o autor: jzabatiero@ftsa.edu.br