O sentido da vida no cenário da espiritualidade contemporânea | Por Jonathan Menezes

Futilidade do problema da imortalidade. O que nos interessa é nosso destino, sim. Mas não ‘depois’, ‘antes’”. (Albert Camus)

A questão principal não é se existe vida após a morte, mas se existe vida antes da morte”.
(Rob Bell)


1. Questões introdutórias

Queria partir dessas duas frases da epígrafe para dizer algumas coisas, a meu ver, importantes sobre a temática do “sentido da vida”, antes de pensar sua relação com o horizonte da espiritualidade e, por conseguinte, pensar em implicações e desafios para o presente. Essas serão, portanto, minhas considerações iniciais:

1. Nossa antiga e mui evangélica preocupação com o “celeste porvir” já não tem o mesmo apelo de antes. Não é que ela tenha desaparecido do horizonte, mas parece que temos percebido que existem coisas importantes para se fazer aqui e agora, antes de pensar no lá e depois. Em outras palavras, tão importante quanto saber se haverá um céu (quando fizermos “a travessia”), é viver de modo a experimentar um pouco do céu cá.

2. Essa é justamente a questão-chave para entender Eclesiastes, o livro que mais tematiza a questão do sentido da vida na Bíblia: o “medo desesperado de morrer antes de aprender a viver” (Kushner, 1999). Ele diz “melhor ser um cão vivo que um leão morto”. Ou seja, bem ou mal, somente gente viva – aqui, presente, agora – pode ter esperança. “Sou feliz nesse mundo”, disse Albert Camus (2014, p. 17), “porque meu reino é desse mundo”. Essa é também a esperança de Eclesiastes: que mais pode o ser humano fazer, diante da fugacidade (falta de sentido) de tudo, senão viver bem a vida?

Duas notas de esclarecimento, antes de prosseguir:

(a) Em diálogo com Pilatos – que havia, lembrando, lhe perguntado se ele era o “Rei dos judeus” –, Jesus disse: “Meu reino não é deste mundo. Se fosse, meus seguidores lutariam para impedir que eu fosse entregue aos líderes judeus. Mas meu reino não procede deste mundo” (Jo 18:36, NVT). Essa versão deixa claro que o “não ser deste mundo” da primeira afirmação diz respeito a “não proceder dele” e, portanto, não operar segundo seus meandros. A melhor maneira de servir uma igreja, uma sociedade ou o mundo é nos tornando livres em relação às suas expectativas e exigências. Do contrário não seremos servos livres, como os profetas ou Jesus, mas vassalos obedientes, meras marionetes nas mãos de um sistema. (b) Paulo foi quem disse que se nossa esperança se limita apenas a esta vida somos e seremos as pessoas mais infelizes do mundo (1Co 15:19). Por isso, não se trata de esperança neste, mas deste mundo, isto é, enquanto fazemos parte deste mundo, anunciamos (e encarnamos) a visão de um novo céu e uma nova terra (Ap 21:1). De novo Camus (2014, p. 18): “A eternidade está aí e eu esperava por ela”. Não apenas esperar, mas semear a eternidade é o que o Evangelho nos ensina a fazer.

3. Retomando: Por que, então, temos nos perguntado e debatido com a questão do sentido da vida há tanto tempo? Porque sabemos que vamos morrer, só não sabemos quando – e precisamos, por isso, aprender a viver antes que o fim venha. É a angústia diante da finitude que levou o salmista a orar assim: “Mostra-me, Senhor, como é breve meu tempo na terra; mostra-me que meus dias estão contados e que minha vida é passageira. A vida que me deste não é mais longa que alguns palmos, e diante de ti toda a minha existência não passa de um momento; na verdade, o ser humano não passa de um sopro” (Sl 39:4-5, NVT, grifos meus).

Diante da constatação da brevidade da vida – independente de quantos anos se viva, a vida é de fato “sopro” – a questão, então, deixa de ser qual é o sentido da vida (pois ela não possui nem oferece um), passando a ser: que sentido podemos encontrar ou produzir na vida? O ideal é que, no processo, ouçamos os conselhos de Deus e busquemos sua vontade, mas fazemos isso tendo que, simultaneamente, fazer escolhas e conviver com as consequências delas, isto é, tendo que viver a vida. E isso é um presente que Deus nos deu desde a criação, quando nos fez mordomos e co-criadores com Ele. O problema da falta de sentido nos acompanha, portanto, desde a queda do ser humano, quando trocamos o privilégio inerente ao mandato cultural – presente em imperativos como “sede fecundos”, “multiplicai-vos”, “sujeitem e dominem” – ao dar ouvidos ao que uma serpente qualquer sugeriu sobre o que deveríamos fazer. Ou seja, sob a pressuposição de que seríamos “maiores”, conhecedores do bem e do mal, nos tornamos menores.

Eis o paradoxo: o sentido é uma dádiva, mas também é fruto de nossas escolhas. A vida humana foi feita para ser não uma antessala de outra vida, mas para ser vivida e aproveitada aqui com a intensidade que cada momento permite. William McNamara, no livro A experiência humana: uma loucura divina, diz o seguinte:

A vida humana realmente vivida é sempre uma aventura e uma descoberta. Se nós não estamos rompendo barreiras, atingindo níveis mais profundos de ser, tornando-nos mais e mais humanos, isto é, irradiando Deus primorosamente, então nós estagnamos. Perdemos nossa glória original. (McNamara, 2010, p. XII).

 

2. A espiritualidade contemporânea e a questão do sentido

Antes de prosseguir, um problema de pesquisa: Por que temos tido tanto interesse e tanto prazer em falar de espiritualidade ultimamente? É que possível relação há entre a resposta a essa pergunta e a questão do sentido da (ou na) vida?

Gostaria de propor três teses gerais sobre este cenário, dentro de uma perspectiva limitada.

Tese 1: A busca pela espiritualidade hoje está ligada, a meu ver, com a busca pelo ser – aquele que perdemos de vista enquanto nos preocupamos tanto, no último século, em dominar e conquistar o mundo. Esse é o preço: a perda do ser, ou “da alma”, como alertou Jesus. Por isso se endereça pela pergunta: “Afinal, quem sou eu?”. Essa redescoberta do ser tem prós e contras. O pró é que passamos a nos preocupar mais em nos conhecer melhor a fim de viver melhor. O contra, ou a tentação, é voltar à estaca zero e tornar, de novo, a percorrer uma egotrip – a jornada do ego e o cultivo se sua agenda. Logo, espiritualidade, que seria sinônimo de vida, torna-se a palavra da moda para endereçar apenas meu desejo de satisfação e realização pessoal, ainda utilizando Deus como trampolim.

Tese 2: A busca pela espiritualidade hoje também está ligada ao vazio (crise de sentido) e a desespero que habita as pessoas, e que, diga-se de passagem, a religião tradicional, nem sempre tem sido capaz de preencher. Então, multiplicam-se as diferentes formas de concepção e prática da espiritualidade, dentro e fora das igrejas, como tentativa de preencher esse vazio aparentemente irremediável. E isso, outra vez, tem prós e contras. De um lado, isso é uma forma de humilhação necessária às igrejas, que precisam se reinventar em prol da vida (interna e externa à comunidade) e passar a escutar mais o mundo e o Espírito (Stott) a fim de continuar tendo a possibilidade de ser ouvidas por mais gente além de seu próprio séquito. Por outro lado, isso pode acirrar a competição entres essas diferentes propostas por atenção e adesão, de modo que elas podem passar a se guiar mais pela lei da oferta e procura e menos pela fidelidade às exigências do Espírito (em contraste com as do mundo).

Tese 3: A busca pela espiritualidade hoje também é, pelas razões acima, indicativa de uma difusão ou descentralização dos meios para se obter sentido na vida. Richard Holloway (2007, p. 57) argumenta que “a falta de uma única autoridade organizadora é, em si, uma marca importante da espiritualidade humana contemporânea; e que o fato específico de se reunir apenas ocasionalmente é um de seus pontos fortes mais importantes”. Ele está falando sobre essa tendência que encontramos nos chamados meios seculares de buscar a presença, a comunhão e a transcendência sem a necessidade de mediadores institucionais ou religiosos. Isso explica, inclusive, o recente interesse dos ateus pela espiritualidade (ver: Menezes, 2015). É possível, então, encontrar “diásporas espirituais” entre os sem-religião e os ateus, que centram sua atenção na ciência, na ética e na estética (artes em geral). Os limites dessa espiritualidade secular são óbvios e sentidos pelos próprios secularistas,[1] pois, como bem aponta Holloway (2007, p. 56), “não existe nenhuma influência óbvia que possa reunir os sem-Deus e motivá-los para o trabalho”, além do fato de que eles também “não se reúnem semanalmente para ser eticamente desafiados e espiritualmente elevados”. Oportunidade para que surjam mais iniciativas cristãs que ousem sair da mesmice e se juntar ocasionalmente a essa diáspora espiritual a fim de ensinar e encarnar o caminho da nova humanidade representada em e por meio de Cristo Jesus.

 

3. Espiritualidade e sentido: pistas para a igreja contemporânea

Gostaria agora de apresentar sete pistas de como a igreja contemporânea pode atuar neste cenário a partir do quadro pintado acima. Para cada uma delas quero também oferecer alguns referenciais de leitura, a partir dos quais você poderá se aprofundar mais nesses temas.

3.1. Rebelião contra a desumanização. Venho batendo há alguns anos nesta tecla, o que rendeu dois livros sobre o tema: Humanos, graças a Deus (2018), e Espiritualidade em transformação (2015). Ambos partem da pressuposição de que as pessoas hoje suportam menos do que ontem a tendência de dissociar a espiritualidade, bem como o exercício da liderança, da humanidade que nos constitui. Isso cria, por sinal, uma necessária rebelião contra a desumanização, uma revolta que encontramos na própria Escritura, tendo em vista que Deus se humanizou para nos sintonizar de novo com o divino que há no humano. Nossa diferença para com os demais animais é que nós nos desumanizamos, enquanto um cachorro não se torna menos cachorro, nem os gatos se “desgatizam”. E cada vez que o fazemos perdemos um pouco mais o sentido. Precisamos urgentemente de uma espiritualidade para a qual nada do que é humano deve ser estranho, nem na igreja mesma, nem naqueles/as a quem ela presta cuidado. Parafraseando Segundo Galilea, o que não pode ser assumido também não pode ser redimido. Lembremo-nos e nos voltemos ao exemplo do Cristo (cf. Fp 2.5-11).

3.2. Ressignificação da dor. “Não fuja da dor, não fuja da dor. Querer sentir a dor não é uma loucura. Fugir da dor é fugir da própria cura”, são os versos finais da canção do Titãs (2001). Eles sinalizam um grito da arte contra a nossa tendência, reforçada pela religião e por muitos de seus líderes, de rechaçar a dor – oferecendo, por sua vez, seus entorpecentes e dizendo que “não precisamos passar por sofrimento, pois somos filhos de Deus”. Ao contrário, “sentir a dor”, como sugere a canção, é o passo necessário para a cura, bem como uma possível descoberta de sentido. Recomendo a leitura de Em busca de sentido (2004), de Viktor Frankl, um relato de um psiquiatra que passou pela experiência de ser prisioneiro em campos de concentração nazista, mas sobreviveu para contar histórias sobre o comportamento de prisioneiros nessa condição, seu sofrimento e a questão do sentido. Ele relata ter conhecido pessoas que reagiram ao sofrimento de inúmeras formas, sendo algumas delas “dignas de seu tormento”, pois não perderam sua liberdade interior – que consiste, segundo ele, em “configurar a vida de modo que ela tenha sentido” – até o último suspiro. “Se é que a vida tem sentido, também o sofrimento necessariamente o terá” (Frankl, 2004, p. 67). Precisamos desesperadamente de uma liderança que nos encoraje a lidar com o sentido trágico (isto é, afirmador) da vida, reconhecendo com Frankl (idem) que “aflição e morte fazem parte da vida como um todo”, e que precisamos estar prontos para receber e lidar com ambas.

3.3. Redescoberta da alegria. Ainda que a palavra “felicidade” continue sendo um imperativo que representa anseios mais variados das pessoas hoje, como demonstra, por exemplo, a pertinente análise de Zygmunt Bauman em A arte da vida (2010); paira também no ar cada vez mais uma desconfiança de que a insatisfação que nos assalta à meia noite – quando as máscaras caem e as realizações efêmeras do dia perdem sua força – jamais nos deixará enquanto não aprendermos a cultivar a força do contentamento, expressa na carta paulina aos Filipenses (vide Fp 4:10-14). Também em obras filosóficas como Alegria: a força maior, de Clemént Rosset (2000), O poder da alegria, de Frédéric Lenoir (2015) e O paraíso à porta – Ensaio sobre uma alegria que desconcerta, de Fabrice Hadjadj (2015), todos autores franceses e que esposam, cada um a seu modo, a perspectiva trágica sobre a qual falei anteriormente. Precisamos cada vez mais de uma espiritualidade que instigue a busca de uma alegria mais profunda, escondida no segredo do contentamento bíblico.

3.4. Enfrentamento dos paradoxos. Defino “paradoxo” como a coexistência harmônica ou conflituosa de realidades que na doxa (pensamento ou opinião comuns) são opostas ou díspares. Eclesiastes dá uma série de demonstrações de paradoxos, a exemplo do paradoxo do conhecimento (quem cresce em conhecimento cresce também em sofrimento), o paradoxo da eternidade (ela reside no coração humano, mas também nos deixa nos escuro) ou o paradoxo do trabalho (é um enfado e, ao mesmo tempo, uma dádiva), só para mencionar alguns. A reflexão sobre o paradoxo é necessária num tempo de incertezas e falta de sentido como o nosso. Um “pensador sem paradoxo”, disse Sören Kierkegaard, é como “um amante sem paixão, um tipo medíocre”. Líderes e crentes que evitam paradoxos também habitam, consciente e inconscientemente, na mansão da mediocridade, dando conselhos medíocres e vivendo vidinhas medíocres. Um trabalho sério e inspirador recentemente publicado sobre o tema é o Entre a luz e a escuridão do dia, de Joan Chittister (2019). Ela nos lembra que hoje precisamos com prioridade de uma liderança que tanto guie, quanto aceite ser guiada em meio às, e abraçando as, contradições da vida. “Isso pode nos salvar de nos entregarmos aos enigmas da vida em desespero” (Chittister, 2019, p. 14).

3.5. Libertação da perfeição. A imperfeição é um dado da natureza humana; a perfeição, um dado na natureza divina. Quando o humano e divino se reúnem – porque a separação nunca foi uma iniciativa divina, senão humana e, não obstante, permanecemos sendo imagem e semelhança mesmo quando cortamos os laços de comunhão com o divino – perfeição e imperfeição se tocam mutuamente, e o Verbo se faz carne e habita entre nós “cheio de graça e de verdade” (Jo 1:14). Perceba que o que aproxima o ser humano da perfeição é justamente o reconhecimento jubiloso de sua imperfeição, e aceitação do vínculo da perfeição, o amor de Deus, que diz: “Sim, eu te aceito e te amo do jeito que você é. Não precisa fazer nada, basta que você simplesmente seja em Mim, e assim será maior e coisas maiores, inesperadas e inimagináveis fará, porque escolheu permanecer em mim” (vide Ec 9:7; Lc 3:22; Jo 15:1-17). Como diz Richard Rohr em A libertação do ego (2010, p. 55), “o homem só se tornará adulto quando souber o que é em Deus”. Além desse opúsculo de Rohr, recomendo também a leitura de Salvos da perfeição, de Elienai Cabral Jr. (2009), que ousou sonhar e viver uma liderança e um pastoreio que vão além da ação habilidosa, gerencial e eficaz, que se realiza num mesmo chão humano partilhável: “Pastoreio à medida que sou amigo, que exponho minha alma e divido minhas percepções sobre a vida. Desconheço o trabalho pastoral como gestão para eficiência. Reconheço-me entre amigos que promovem um ambiente de integridade e afeto para a maturidade” (Cabral Jr., 2009, p. 51). Necessitamos efusivamente de uma espiritualidade (e de uma liderança) que lide maduramente com a imperfeição e vulnerabilidade humanas.

3.6. Diálogo com não-crentes. Já falei em tópico anterior sobre o desafio que nos coloca certa espiritualidade secular, ligada também ao interesse dos ateus em uma espiritualidade meramente humana, na qual não há mais lugar para Deus ou para a religião. Neste ponto o assunto é outro. No lado oposto ao ateísmo cientificista, que aposta nas certezas da ciência para desbancar a fé e tirar Deus do cenário, existe, na concepção de Tomás Halík, um “ateísmo da dor”, que nasce de um litígio profundo não com Deus propriamente, mas com uma representação ou imagem de Deus, e com os abusos cometidos em nome dessa imagem (que pinta um Deus punitivo ou inimigo da vida, por exemplo). Se um opositor clássico do primeiro tipo de ateísmo tem sido o pensamento apologético – já que ambos (apologetas e cientificistas) encenam a obediência a um dogmatismo racional-manualístico e, portanto, nutrem a pretensão de convencer o outro de que cada um está ao lado da “Verdade” e quem pensa diferente está excluído dela –, em relação ao segundo ateísmo, onde não há tanto desprezo quanto há dor e dúvida, precisamos encontrar pontos de encontro e solidariedade. Ou seja, devemos “mostrar que a experiência cristã da fé conhece também esses momentos, que a história central do cristianismo, o drama pascal, inclui igualmente as trevas da Sexta-feira Santa e o grito de abandono de Jesus” (Hálik, 2017, p. 57). Carecemos cada vez mais de uma liderança (teológica mais ainda) que escute com atenção o “ateísmo da dor”, bem como os desencantos com Deus e a religião que nascem dos abusos espirituais, a fim de parar de dar respostas a perguntas que não foram feitas.

3.7. Despertar da consciência. Byung-Chul Han (2017) assevera que uma das grandes guerras que travamos hoje é a “guerra mental” ou psíquica. Uma batalha normalmente perdida, e não somente porque damos muito ouvido ao que Eckhart Tolle (2007, p. 32ss) chama de “voz na nossa cabeça”, e todas as ideias que ela planta, mas também porque deixamos de lidar com esses males psíquicos no nível da consciência, transplantando-os, assim, ao nível dos relacionamentos. Desse modo, deixamos que uma percepção distorcida de quem somos (o ego) pelos outros entre em guerra com uma percepção distorcida que nutrimos dos outros, numa verdadeira batalha de egos. A cada dia a observação da experiência humana atesta: quem não cuida bem de sua vida interior – identificando sombras e demônios e lidando com eles honestamente – tende a projetar essas mesmas sombras e demônios nos outros. Daí o inferno sempre será “os outros”, como vaticinou Sartre, e nunca uma condição auto imposta.

O que Eckhart Tolle (2007) e Anthony de Mello (2014) chamam, cada um ao seu modo, de “despertar da consciência” serve justamente para que reconheçamos que essas formas de inimizade que perpetuamos em sociedade são, antes, projeções de uma inimizade existente e não tratada em nosso próprio coração, fruto do domínio do ego e da supressão de nosso “eu mais profundo”, que não se confunde nem com os papéis que representamos, nem com nossas identificações externas. Em suma, um eu cada vez mais livre das exigências externas e submetido ao que Roland de Pury (1950) chamou de “exigências do Espírito”:

Só trevas podemos esperar de um mundo, de uma Igreja, de um povo, de um partido, que não reconhecem ao homem a liberdade e a exigência mais sagrada: a de ser ele mesmo. A de enfrentar aquele que Lutero chamava ‘o símio de Deus’ o pai da mentira, que só tem um fim: fazer-nos representar a comédia. Comédia bem pensante ou comédia mal pensante, comédia religiosa ou comédia leiga; que diferença faz, desde que seja uma comédia? Papel de um pastor ou papel de um comunista, papel de uma mulher mundana ou papel de uma camponesa; papel de um orgulhoso ou papel de um humilde. Pouco importa ao Espírito Maligno, contanto que seja um papel e que o meu eu profundo não esteja nele; contanto que, entre mim e as coisas boas ou más que eu faço e que eu digo, a mentira se tenha introduzido, separando a minha vida de mim mesmo; que importa ao Espírito Maligno o que eu digo, o que eu faço, o que eu creio, contanto que eu esteja alienado e não seja completamente eu que o diga, que o faça e que o creia; e que, assim, quando a personagem que eu tiver representado durante cinquenta anos for citada diante do Tribunal da Verdade, não haja simplesmente ninguém, porque não terá havido ninguém na minha existência (…), ninguém que fosse inteiramente verdadeiro, que emanasse do meu eu autêntico e livre, de um eu sob a exigência do Espírito. ‘Você representou bem ou mal o seu papel, mas nunca existiu, nunca foi você mesmo, não o conheço’, dirá o Espírito. É uma das definições que Kierkegaard dá do desespero: não sermos nós próprios. Essa ‘doença mortal’ de que ninguém se apercebe a não ser quando começa a curar-se. (Grifos meus)

Precisamos, por fim, de uma espiritualidade que fomente a lucidez sobre o poder escravizador do ego sobre a vida das pessoas, crentes inclusive. E que as auxilie na busca de compreensão de quem são, bem como da aceitação de quem são em Deus. O cuidado de si passa assim, como vimos, por uma consciência cada vez mais clara da existência de um si-mesmo falso, a quem vimos alimentando e dando poderes ao longo da vida; pela emergência do “eu-verdadeiro”, o que somos em Deus, que está sob as “exigências do Espírito”; o que também significa, para todos os efeitos, um esquecimento de si e um perder-se libertador, na qual é morrendo que se ressuscita para a vida, conforme nos ensinou Jesus: “Se tentar se apegar à sua vida, a perderá. Mas, se abrir mão de sua vida por minha causa, a encontrará” (Mt 16:25, NVT).

Que o Senhor abra os olhos do nosso coração; que ilumine nossos passos, quando o caminho ficar escuro; que nos ajude a abraçar a escuridão a fim de encontrar a luz; e, assim, que nos use como luzeiros em meio à um mundo confuso e trepidante em suas próprias trevas.

[1] Um exemplo emblemático disso pode ser encontrado no livro Religião para ateus (2011) de Alain de Botton que se rende parcialmente ao que julga ser aspectos indispensáveis da religião para uma vida e sociedade melhores, sem que, no entanto, alguém precise crer em Deus ou pertencer a uma religião.

 

Referências bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
DE BOTTON, Alain. Religião para ateus. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011.
CABRAL JR., Elienai. Salvos da perfeição: mais humanos e mais perto de Deus. Viçosa, MG: Ultimato, 2009.
CAMUS, Albert. Esperança no mundo. Cadernos (1935-37). São Paulo: Hedra, 2014.
CHITTISTER, Joan. Entre a escuridão e a luz do dia: abraçando as contradições da vida. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.
DE PURY, Roland. As exigências do Espírito. In: DE PURY et. al. Os direitos do Espírito e as exigências sociais. São Paulo: Publicações Europa-América, 1950.
FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido. Petrópolis, RJ: Vozes; São Leopoldo, RS: Sinodal, 2004.
HADJADJ, Fabrice. O paraíso à porta – Ensaio sobre uma alegria que desconcerta. São Paulo: É Realizações, 2015.
HÁLIK, Tomás. Livrar-se de Deus? Quando a crença e a descrença se encontram. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
HOLLOWAY, Richard. Olhando a distância. A busca humana por significado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
KUSHNER, Harold. Quando tudo não é o bastante. São Paulo: Nobel, 1999.
LENOIR, Frédéric. O poder da alegria. São Paulo: Objetiva, 2015.
MCNAMARA, William. The Human Experience: A Divine Madness. Silver Spring, MD: The Beckham Publications Group, 2010.
MELLO, Anthony de. Redescobrindo a vida: desperte para a realidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
MENEZES, Jonathan. Humanos, graças a Deus! Em busca de uma espiritualidade encarnada. São Paulo: Recriar, 2018.
_________. Espiritualidade em transformação: sentido, humanidade e vida. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2015.
ROHR, Richard. A libertação do ego: a busca do verdadeiro si-mesmo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
ROSSET, Clémént. Alegria: a força maior. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
TOLLE, Eckhart. Um novo mundo: o despertar de uma nova consciência. Rio de Janeiro: Sextante, 2007.

Sobre o autor
Jonathan Menezes é Doutor em História pela UNESP/Assis, além de Professor e atual Coordenador da Graduação Presencial da Faculdade Teológica Sul Americana.

Contato com o autor: jo******@ft**.br