O que exatamente é a Igreja? | Por Rubens Muzio

Introdução

Nesta edição da Praxis todos os artigos refletirão sobre o papel da igreja pós-pandemia. Neste primeiro artigo, falarei sobre o seu propósito e finalidade no mundo contemporânea. É evidente que quando pensamos na igreja, estamos falando de algo mais do que uma denominação histórica, um prédio, um clube, um grupo social nas casas ou célula de estudo bíblico. Por outro lado, a igreja como instituição, preocupa-se com doutrinas e procedimentos, tem história, herança e tradições, prédios e departamentos. A igreja como comunidade é espaço de apoio, pertencimento, família, fraternidade. A igreja também é lugar de adoração e liturgia, com celebração, bandas de louvor e apresentações musicais. E a igreja tem uma missão, está preocupada com a evangelização das cidades mais carentes e o alcance os povos não alcançados. Portanto, a igreja existe em relação a todos estes significados, não está contida completamente em qualquer um deles, sendo mais abrangente que todos eles juntos.

A pandemia não mudou o fato de que é a comissão primária da igreja é abençoar o nosso país, no sentido de que ele experimente os valores de amor, justiça e paz do reino de Cristo. Jesus ordena à sua igreja que pregue o evangelho do reino (Lc 4.43) e discipule as nações (Mt 28.18). O formato e a substância da era futura vêm até a realidade concreta no meio dos discípulos de Cristo. Karl Barth referia-se a este aspecto da igreja como “a demonstração provisional de Deus da sua intenção para toda a humanidade”[1]. Sua vida, portanto, deve ser moldada pela visão do seu Cabeça de “fazer discípulos de todas as nações” (Mt 28.19). Os anjos celestiais reiteram este fato de uma outra maneira ao dizer “o reino deste mundo se tornou de nosso Senhor” (Ap 11.15). E a igreja, apesar de presente, é também futura. Jesus disse: “edificarei a minha igreja…” (Mt 16.18). Jesus está dizendo que a iniciativa é de Deus, o crescimento vem dele; a missão é missio dei e a igreja sua propriedade singular. Como a igreja não tem vitalidade alguma fora de Cristo, o cabeça da Igreja, ela não tem outro propósito além do Seu propósito. Sua identidade, portanto é gerada a partir do próprio Senhor. A vitória final também está garantida!

Assim, a igreja local não foi chamada para ter a finalidade e significado em si mesma. Pelo contrário, “igreja” é uma palavra que simboliza um grupo de pessoas cujos projetos e estruturas funcionam de acordo com os propósitos e planos para os quais Deus a chamou para existir. Fazemos parte de uma realidade presente, mas também pertencemos a uma comunidade escatológica, uma comunidade que será, que virá a ser. Como comunidade focada na esperança escatológica, ela se organiza de acordo com a visão do reino de Deus que ainda há de vir. Fazemos parte de um corpo que se move inexoravelmente em direção à sua própria plenitude, avançando em estágios. Tendas ao invés de templos descrevem melhor o seu desenvolvimento enquanto ela se move no tempo. À medida que a igreja demonstrar esta nova realidade dentro da comunidade onde se localiza, ela será bem-sucedida na tarefa de ser abençoadora para a sociedade contemporânea.

A essência e propósito brevemente explanados acima, nos leva a questões da sua práxis e práticas ministeriais: O que a nossa igreja local faz que deveria parar de fazer e o que ela não faz que deveria fazer? O restante deste artigo tratará de quatro funções que nos ajudarão a responder estas questões; 4 áreas que necessitam estar balanceadas, em equilíbrio na igreja local: koinonia, kerigma, diakonia, e marturia.

  1. Koinonia / Comunhão

Em o Novo Testamento, a palavra grega para comunidade é koinonia, uma comunidade de homens e mulheres que creem em Jesus Cristo como Salvador e Senhor de suas vidas. Na união com Cristo, concretizada pela fé, os cristãos foram indissoluvelmente incorporados nesta comunidade. De uma maneira simbólica, a Bíblia fala da comunidade de discípulos como sendo membros do corpo de Cristo. Ele é o cabeça (Ef 1.22). Isto é autenticado pela presença do Espírito Santo em todos os membros e na comunidade inteira. Em união com o Cristo ressurreto, a vida e poder de Cristo são compartilhados pelo Espírito com todos os seus membros. Existe somente um corpo, pois Cristo “destruiu a barreira, o muro de inimizade” (Ef 2.14) – não há mais judeus ou gentios, homens ou mulheres, escravos ou libertos. Todos em Cristo se tornaram um com Ele e com os outros. Este conceito de comunidade é fundamental para a nossa compreensão da identidade da igreja e não deve ser sacrificada ao reducionismo por causa dos desafios contemporâneos. Esta comunidade está fundamentada no amor. Jesus nos ordena que amemos uns aos outros como Ele nos amou.

É claro que a questão é: “como os cristãos podem estar em unidade quando há uma série de razões para a diversidade?” Eu morei em Toronto, Canadá, por alguns anos e experimentei a vida numa cidade cosmopolita e globalizada, onde mais de 600 línguas eram faladas nas ruas, entre cerca de 140 grupos étnicos. Nas salas de aulas que meus filhos frequentavam era comum verificar entre 20 estudantes a presença de pelo menos 10 línguas diferentes. O fracasso de muitas igrejas de alcançar uma integração racial e social silencia a mensagem de paz em comunidades urbanas, digitais e culturalmente pluralistas. Cada vez mais, as igrejas falam da boca para fora de sua universalidade, mas se mostram como grupos etnocêntricos e exclusivos. Ajith Fernando, um respeitado líder e estudioso asiático, em sua exposição sobre Efésios 2.13-16 a respeito de como a cruz quebra as barreiras das diferenças e divisões, escreveu:

O preconceito tem sido um problema porque todos estamos embebidos dos preconceitos de nosso meio, onde se afirma ser um grupo superior a outro. Vindo de uma nação na qual a tensão étnica tem causado muito caos, posso dizer que, mesmo com respeito aos cristãos, os nossos preconceitos estão entre as últimas coisas que o processo de santificação toca. Os preconceitos podem dizer respeito à raça, classe, casta ou a outro destes fatores terrenos que não são significativos na visão de Deus. Aqueles que afirmam que não são preconceituosos são normalmente os mais preconceituosos. E algumas vezes, os que afirmam ser cristãos crentes na Bíblia são os mais antibíblicos com respeito a este assunto. (AJITH, 1995, p. 198-9)[2]

A unidade dos cristãos é essencial para o seu testemunho e o poder da sua mensagem pós-pandemia. Essa unidade não está baseada na uniformidade, mas na diversidade. A imagem que Paulo tem da igreja reflete o mistério, a multiforme sabedoria de Deus, que é brilhante como as cores do arco-íris e variada como as múltiplas cores de um campo de flores (Ef 3.10). A igreja tem muitas partes como um corpo, mas é um só corpo (1Co 12). O lema da Assembleia da Aliança Evangélica de 1783 em Nova Iorque era: In Necessariis Unitas; In Dubiis Libertas; In Omnibus Caritas. Isso pode ser traduzido como: nas questões essenciais, unidade; nas não-essenciais, liberdade; em todas as outras, caridade. Unidade e cooperação funcional estão baseadas em um núcleo irredutível mínimo de crenças, num núcleo doutrinário bem definido dos quais eu incluiria a Trindade, a deidade de Jesus Cristo, o amor de Deus pelo mundo, a salvação na cruz de Cristo e a vida eterna.

Cristãos precisam ser modelo de reconciliação e paz antes que possa sequer falar de reconciliação, paz ou participar de qualquer mediação significativa nos conflitos sociais. Reconciliados com Deus e uns com os outros em Cristo, nós recebemos o ministério da reconciliação (2 Co 5). Este ministério, para que seja efetivo, requer uma demonstração prévia de realidade – a unidade da igreja – antes que possa sequer falar de reconciliação ou participar de qualquer mediação significativa em conflitos. A unidade não precisa ser uma unanimidade de crenças, embora as igrejas locais, normalmente, estão divididas por causa de personalidade, cultura, denominacionalismo e doutrinas. Há um nível elevado de conflitos nas relações humanas e não me parece que isso é diferente nas igrejas. Usamos da manipulação verbal e do abuso do poder em nossas organizações. Punimos as pessoas com palavras e fazemos comentários ferinos com aqueles que trabalham conosco. Instigamos outros a cometerem erros com ordens contraditórias, usamos comportamentos sádicos e impomos exigências emocionais excessivas sobre amigos, familiares, cônjuges. A falta de amor nos impede de respeitar os limites do outro. Como falar em resolução de conflitos se não sabemos lidar com nossas diferenças? A igreja é o local onde deveríamos lutar para vencer a hostilidade, superar a inimizade, buscar a paz e trabalhar por relacionamentos mais pacíficos e harmoniosos. Abaixo apresento algumas sugestões:

  1. Lembre-se todo o tempo que somos irmãos e irmãs na fé e que Deus nos ama a todos igualmente
  2. Comprometa-se a ouvir atenta e respeitosamente quando outro irmão estiver falando, evitando interrupções ou respostas imediatas.
  3. Evite uma postura de adversários. Ao invés disso, busque resolver problemas e fazer o que for o melhor para a comunidade de fé
  4. Concorde em receber e ponderar sobre as novas informações e objetivos que possam ajudar a melhor compreender a situação
  5. Tente focar e discutir os temas em debate, evitando ataques pessoais e dispersando comentários acerca das atitudes e perspectivas dos outros
  6. Concorde com uma comunicação direta, evitando triangulações (fulano falando com beltrano ao invés de diretamente com o ciclano com quem não concorda e A reclamando de B para C) e falando por trás sem que a pessoa esteja presente para se defender.
  7. Confie que Deus está trabalhando e pelo Espírito Santo o capacitará a encontrar alternativas criativas para que todos cheguem num consenso sem que ninguém precise renunciar às suas convicções centrais e valores chaves.

Essas são apenas algumas diretrizes iniciais de engajamento e busca da paz dentro da função primordial da unidade da igreja. Precisamos aprender do obunto da África, que significa “eu sou porque nós somos”, no qual a individualidade é também definida pela sua comunidade. É por isso que precisamos encorajar os cristãos a desenvolverem comunidades multirraciais e interdenominacionais (ou não-denominacionais) como testemunho da Nova Criação em Cristo.

  1. Kerigma / Proclamação

A palavra grega usada para o conceito de proclamação no Novo Testamento é kerygma ou simplesmente “mensagem”. Kerigma é outra marca indispensável de uma comunidade de discípulos de Jesus. Os Evangelhos iniciam dando destaque a mensagem pregada por João Batista: … está próximo o reino dos céus (Mt 3.2). Jesus declara ter sido enviado para anunciar “o Evangelho do reino de Deus” (Lc 4.43). A igreja tem uma história a contar. Na linguagem comum dos cristãos, a história do Reino é que Deus já derrotou o mundo e a maldade em Jesus, possibilitando que homens e mulheres se tornassem “herdeiros” do Criador, filhos de Deus pela graça do amor. João nos fala claramente que aos que o receberam, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus (Jo 1.12). Agora há descanso, paz, restauração e redenção pela fé nele. A batalha decisiva teve lugar na vida e morte de Cristo no Calvário. Jesus é Rei, Senhor e Salvador do Universo! A igreja vive essa história. Sempre que o Evangelho do Reino é pregado, a questão do sentido e significado último da história humana é exposto. O senhorio de Cristo não se resume apenas no seu domínio sobre a vida dos crentes, mas também tem implicações sociais e políticas e proporções cósmicas e universais.

No entanto, o que constitui a proclamação? O conteúdo da proclamação cristã é Jesus Cristo. A proclamação do Evangelho feita por Paulo focalizava a pessoa de Cristo (Gl 1.16) e, mais especificamente, o Cristo crucificado e ressurreto dos mortos (1Co 1.23; 15.23). A dimensão kerygmática do Novo Testamento se focaliza em Jesus como Senhor, Cristo e Salvador. A existência da igreja é definida no recriar, reviver, re-encarnar e re-dramatizar esta história da vida, morte e ressurreição de Jesus. McGrath insiste que

a Cristologia desempenha um papel decisivo na teologia e reflexão espiritual evangélicas, e fornece à teologia evangélica tanto a sua coerência intelectual quanto o seu foco evangelístico e espiritual. A questão “quem é Jesus Cristo?” é, desta maneira, determinante para todo o empreendimento teológico evangélico (MCGRATH Alister McGrath, A Passion For Truth (Illinois: InterVarsity Press, 1996), 135

A centralidade da cruz de Cristo tem sido por muito tempo um tema de destaque na teologia e espiritualidade evangélicas. Portanto, Cristo se torna a chave para se entender a história. O sucesso não se encontra por detrás do projeto pessoal, prédios construídos ou programas ministeriais. O crescimento da igreja local ou desenvolvimento ministerial não é mero fruto do planejamento estratégico e trabalho duro. O sentido não está nos resultados, no processo ou na estrutura em si, mas que a história encontrará o significado que Deus deu a ela em Cristo Jesus. O Evangelho nos chama de volta à verdadeira chave, segredo da história: Jesus.

A proclamação dessa mensagem tem basicamente duas direções. Primeira, o Evangelho deve ser proclamado na igreja. Somos informados de que a igreja é feita de joio e trigo (Mt 13.25, 30, 36), existem ovelhas e bodes no rebanho (Mt 25.32). O joio e o trigo crescerão juntos. A mensagem continuará a ser um ministério necessário dentro da igreja. De fato, na igreja existem “igrejeiros”, “consumidores”, participantes, interessados e também existem alguns cristãos. Segunda, a confissão kerygmática “Jesus é o Senhor” também implica obrigatoriamente num movimento para fora, em direção ao mundo. “Jesus é o Senhor” significa “Jesus é o Senhor do mundo”. Reconhecemos que o Reino reconciliador é um Reino universal que abraça todas as etnias e países. Não podemos viver no exclusivismo e nos furtarmos do fato de que confessar que Jesus é o Senhor a faz voltar-se em grande escala para a sua própria universalidade – um movimento para fora, em direção às nações.

A mensagem de Cristo exigirá a nossa resposta de fé. Ela deve ser alimentada dentro da comunidade da igreja através da qual o crente encontra uma família, cresce em conhecimento da sua palavra, desenvolve os seus dons e serve a Deus no mundo. Esta resposta se desenvolve num relacionamento de união com Cristo. As pessoas não estão procurando melhores argumentos sobre a existência de Deus ou sobre a veracidade do cânon! Elas estão procurando demonstrações nas pessoas, aprendizes de Jesus, que pensem e vivam como Ele. Dietrich Bonhoeffer, teólogo-pastor-espião, enforcado durante a segunda guerra, costumava dizer que muitos cristãos se juntaram como urubus ao redor da carniça da graça barata e beberam o veneno que matou o discipulado de Cristo. No centro do discipulado, está o sofrimento e morte do discípulo. A essência da pregação cristã deve ser a proclamação da morte, ressurreição e exaltação de Jesus, que leva à apreciação e aceitação de sua pessoa como Senhor e Cristo, confrontando as pessoas com a necessidade de perdão dos seus pecados e sua aceitação como filhos de Deus. O mundo está para ver o que Deus pode fazer através deste tipo de comunidade que viva a mensagem do evangelho de misericórdia, amor e justiça de Deus.

  1. Diakonia / Serviço

A palavra grega diakonia pode simplesmente ser traduzida por “serviço”. A ideia básica vem de “servir mesas”, mas acabou sendo usada de maneira geral para serviço, comumente para tarefas domésticas. Lucas, por exemplo, registra um arranjo primário da igreja em Jerusalém pelo qual os líderes serviam comida às viúvas e aos necessitados em comunhão (At 6.1). Os discípulos, que começaram a operar milagres, curar os enfermos e tratar dos necessitados, já não podiam cuidar devidamente do trabalho diaconal. Desenvolveu-se um novo modelo de ministério – o diaconato. Esse aspecto do discipulado cristão espalhou-se rapidamente; Lucas fala de Dorcas, cujo serviço de diaconia era valorizado pelos discípulos de Jope. Os pobres não podiam ficar sem as roupas que ela fazia. Pedro foi convocado para vir de Lida, a fim de fazê-la reviver (At 9.36-42). Paulo apresenta a diaconia como um ministério maduro e multifacetado, ao escrever aos coríntios, por exemplo, que o Espírito Santo distribui várias diaconias – ministérios de discipulado (1Co 12.5). Os cristãos compartilhavam as suas posses uns com os outros de forma que ninguém estivesse passando por necessidade (At 4). Quando a fome atacou a Palestina, a igreja em Antioquia contribuiu para as necessidades da irmandade (At 11). A igreja primitiva, portanto, era uma comunidade diaconal como um todo.

A palavra “diakonia” expressa muito bem ambos os conceitos de amar e servir. O sentido dela não pode se limitar aos diáconos como pessoas eleitas para cargos, distribuir boletins, carregar cadeiras e cuidar dos templos. A concepção de João Calvino sobre a diaconia tinha dois aspectos: pietas (piedade, devoção ou obrigações, deveres de piedade; algumas vezes, fé, adoração/culto) e caritas, (amor ou obrigações de amor). Infelizmente, a igreja pós-reforma enfatizou muito mais a dimensão interna da diaconia, a pietas. E isso produziu uma comunidade cúltica, autocomplacente sem relevância comunitária e despreocupada com as questões sociais. Quando a igreja não tem função social, ela deixa de ser igreja.

A busca pelo equilíbrio do serviço a Deus (leitourgia, adoração) e do serviço ao próximo (diakonia, amor) é crucial. Uma boa parábola bíblica é a do Bom Samaritano. O samaritano ajudou seu próximo em necessidade (a pessoa em necessidade que está perto ou que é conhecida por você) não apenas com comida e medicamentos. Ele ajudou até que o homem estivesse de pé, capaz de cuidar de si mesmo. O equilíbrio é claro nas palavras de Cristo: “Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o coração, de toda a sua alma, de todo o seu entendimento e de todas as suas forças… ame o seu próximo como a si mesmo”! A vida cristã tem dois focos inseparáveis: Deus e o próximo.

A Grande Comissão (Mateus 28) deve ser acompanhada pela Grande Compaixão (Mateus 25) em atos como alimentar o faminto, cuidar do estrangeiro e do refugiado, vestir os que estão nus, visitar os prisioneiros. A imagem da igreja em Mateus 25 é a de mordomos prestando contas a seus mestres. No papel de servos, Jesus não fala de discípulos julgados com base em boa conduta, sacrifício, vida religiosa, liturgia, teologia ou constituição racial. Eles são julgados pelo que fizeram ou deixaram de fazer por aqueles de seu mundo que estavam em evidente necessidade. São julgados com base em sua diaconia como servos do Mestre, que deu a vida em resgate por muitos. Isso nos fornece o real sentido do novo mandamento de “amar uns aos outros”. A diferença entre intenção e a prática disso é descrita em 1Jo 3.17,18: Se alguém tiver recursos materiais e, vendo seu irmão em necessidade, não se compadecer dele, como pode permanecer nele o amor de Deus? Filhinhos, não amemos de palavra nem de boca, mas em ação e em verdade. De fato, podem-se levantar muitas possibilidades de ação social quando se contempla a Bíblia com seriedade.

O serviço cristão deve penetrar em cada camada da sociedade contemporânea. Harvey Cox destaca que diakonia realmente se refere ao ato de curar e reconciliar, cuidar das feridas e superar as diferenças, restaurando a saúde ao organismo. Este alargamento do significado é necessário. Mas isso também significa que, curar trata de “reunir em um todo, restaurando a integridade e a mutualidade das partes. Para que possa ser curadora, a igreja precisa conhecer as feridas da cidade em primeira mão” (Cox, p. 115). Isto requer que a igreja viva entre as pessoas na comunidade, imersa em suas realidades, tendo empatia com as suas necessidades e trabalhando com elas para otimizar as bênçãos do reino.

Portanto, a nossa preocupação não deve ser apenas com a proclamação da graça salvadora de Deus, mas também com a diakonia e a promoção da graça comum de Deus no mundo. Jesus disse que Deus “faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos” (Mt 5.45). A igreja deve participar na vida, conflitos temores e esperanças da sociedade de tal maneira que estas expressões concretas do amor de Deus contribuam eficazmente para o alívio da dor humana e desagregação das condições sociais que mantém essas pessoas na pobreza, impotência e opressão. Se a vida física é uma pressuposição necessária para a proclamação do Evangelho, então a igreja deve trabalhar com toda a humanidade e com estruturas que preservem a vida e a dignidade humana. Governo, escolas, comércio e mercados públicos são áreas legítimas para o envolvimento cristão transformacional. Além disso, deve ser feita como se fosse para o Senhor Jesus e motivado pela glória de Deus.

  1. Marturia / Testemunho

A palavra grega para testemunho é marturia, palavra empregada de maneira mais ampla para testemunha oficial de fatos, ou declaração de um fato ocorrido como testemunha ocular. Os “mártires”, testemunhas de Cristo, foram pessoas martirizadas, perseguidas, apedrejadas ou lançadas aos animais no grande Coliseu. Ser testemunha é algo mais amplo e complexo que a conversão inicial de “aceitar Jesus”, da pregação moderna. Jesus disse: vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei. E eu estarei com vocês, até o fim dos tempos” (Mt 28.19-20). O chamado para conversão prescrevia o discipulado: arrependei-vos, pois está próximo o reino de Deus, você foi chamado para uma vida transformada, com mente e coração radicalmente diferentes.

Portanto, para além da proclamação oral do Evangelho existe a necessidade dos crentes tornarem-se cristãos adultos, aprendizes, semelhantes a Jesus Cristo. Este é o início do discipulado. Paulo fala da meta que o crente deve ter de ser maduro (Ef 4.13). E ele ainda exorta veementemente: tornem-se meus imitadores, como eu o sou de Cristo (1Co 11.1). Suas palavras parecem sugerir que ser um cristão é entrar num relacionamento tão íntimo e profundo com ele que os crentes, de certa forma, começarão a imitá-lo em consequência deste relacionamento. A tarefa principal de fazer discípulos nunca foi plantar igrejas e construir grandes templos. A evangelização se une à ética cristã, aplicando-se à sociedade contemporânea: viver como discípulos de Cristo, obedientes a todas as instruções de Jesus. Imitação é desta maneira, o fruto, e não uma condição prévia, da fé. Tornar-se um cristão é um longo processo de se amoldar a Cristo, de dentro da alma, no nível dos pensamentos, sentimentos, inclinações para fora das ações, palavras e decisões.

Além do nosso chamado para a salvação, o chamado de Deus inclui vocações específicas. Alguns dentre nós serão professores ou políticos, outros negociantes, engenheiros ou advogados e assim por diante. Algumas vocações serão acadêmicas enquanto outras serão donas de casa. Alguns se tornarão fazendeiros e outros pescadores. O importante é compreender que todos nós temos uma vocação e devemos exercê-la com grande diligência e excelência. Pense na influência de Cristo através dos cristãos no desenvolvimento da civilização ocidental! O alcance desta influência se estende desde os fundamentos da democracia, indo até a ética social, a economia de livre mercado, a ciência, a educação. Cada crente, cada família, cada igreja precisa assimilar o Evangelho integral. A visão de toda a igreja deveria ser o trabalho, ao lado de Deus, de colocar toda a comunidade e todo o país sob seu domínio e cuidado, de maneira que haja paz social, justiça e retidão. A igreja missionária deve funcionar de acordo com o propósito para o qual Deus a chamou para ser – transformadora da comunidade – no sentido de que ela reflita os valores de um Evangelho integral. Precisamos recuperar a integralidade da nossa vocação.

Conclusão

Uma igreja saudável pós-pandemia precisa buscar o equilíbrio entre todas as quatro ênfases, considerando o que faz, o que deveria parar de fazer e o que não faz que deveria fazer, não agindo unilateralmente ou focalizando somente um ou dois aspectos tratados:

  • Koinonia – a demonstração do caráter da nova humanidade e comunidade em Cristo;
  • Kerygma, a proclamação do Evangelho que chama ao arrependimento e à fé em Cristo;
  • Diakonia, reconciliação, cura e outras formas de serviço em amor, e
  • Marturia, testemunho, discipulado e missão da igreja

A ausência da diaconia (serviço), do kerigma (proclamação) ou da martiria (testemunho), pode significar que a igreja se voltou para dentro de si mesma a tal ponto que não há mais o tipo de koinonia (comunhão) de que Jesus falou. Não podemos esquecer que todas as pessoas saberão se os discípulos amam uns aos outros dentro da igreja, porque esse amor deve ser externado.


[1] BARTH, Karl. Apud Harvey Cox, The Secular City (New York: Collier Books, 1990), 125.

[2] Ajith Fernando, The Supremacy Of The Cross (Illinois: Crossway Books, 1995), 198-199.


Sobre o autor
Rubens Muzio é doutor em teologia pastoral, professor da FTSA e missionário da Sepal.
Contato com o autor: rubens@ftsa.edu.br