Encontros do Evangelho com a cultura nos ministérios de Jesus, da igreja primitiva e de Paulo | Por Marcos Orison Nunes de Almeida

Minha intenção nesse artigo é investigar algumas narrativas bíblicas que mostram relações entre evangelho e cultura, pensando na tarefa missionária. O objetivo, no entanto, não será identificar em qual perspectiva cada uma das narrativas se encaixa, como que buscando algum padrão ou lógica que possa orientar a tarefa missionária. O que buscamos aqui é perceber alguns princípios que norteiam o comportamento e a ação daquele que propaga as boas-novas quando está diante de um encontro inevitável entre o Evangelho e a cultura.

Antes de iniciarmos a investigação das narrativas, é importante manter em mente que nossa observação considera o aspecto mais amplo do Evangelho, definido como a boa notícia – não necessariamente comunicada de maneira verbal – da restauração das relações que envolvem a vida humana. Já a questão cultural, como veremos, tanto aparecerá como um encontro dentro da mesma expressão quanto um encontro entre expressões distintas. Em outras palavras, observaremos encontros subculturais e transculturais.

Por questões didáticas simplesmente, dividiremos as narrativas em três grupos de textos. O primeiro tratará de alguns encontros ocorridos com Jesus em seu ministério lidando basicamente com aspectos culturais próximos à realidade contextual judaica. O segundo tratará das experiências da igreja primitiva em seus primeiros movimentos de transição entre a cultura judaica e a gentílica, nas atuações dos apóstolos e líderes da igreja. O terceiro grupo abordará as experiências do ministério do apóstolo Paulo no contexto da igreja gentílica, tendo em volta a constante presença da liderança cristã-judaica de Jerusalém. Antes, porém, quero propor a observação do que estou nominando de modelo missiológico de Cristo como referência e fundamento para o comportamento da igreja em seus possíveis encontros culturais.

1. O modelo de Cristo

Como pano de fundo introdutório e chave hermenêutica para as narrativas dos encontros que serão estudados a seguir, vamos analisar o hino cristológico presente na carta do apóstolo Paulo aos Filipenses. Este texto clássico e bem conhecido é muito usado na missiologia como o modelo cristológico de contextualização:

Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até à morte, e morte de cruz! (Fp 2.5-8).

A palavra grega traduzida para o português como atitude é φρονειτε (froneité), uma declinação de φρονέω (froneō), que procura indicar a ideia de “pensar” ou de “ter a disposição de mental para algo”. Algumas traduções optaram por usar a expressão “sentimento”, que está mais associada às emoções do que à razão. Não quero aqui estabelecer uma situação dicotômica entre os sentimentos e os pensamentos, mas o apelo do apóstolo Paulo passa por uma consideração lógica e racional para que os crentes de Filipos tenham a mesma disposição mental e de sentimento que houve em Cristo, ou seja, a atitude vivencial que ele mesmo teve em sua ação missionária.

O desenvolvimento do pensamento de Paulo inicia-se antes da apresentação do modelo de Cristo, nos versículos anteriores, e é um detalhamento daquilo que ele entende por ser a atitude que deva permear a vida cristã:

Se por estarmos em Cristo, nós temos alguma motivação, alguma exortação de amor, alguma comunhão no Espírito, alguma profunda afeição e compaixão, completem a minha alegria, tendo o mesmo modo de pensar, o mesmo amor, um só espírito e uma só atitude. Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade, mas humildemente considerem os outros superiores a si mesmos. Cada um cuide, não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros (Fp 2.1-4).

Para Paulo, o ambiente cristão deve ser de motivação, exortação, comunhão, afeição e compaixão. Além disso, espera-se que haja concordância de intenções e pensamentos, na unidade do amor promovida pelo Espírito, levando os crentes a terem uma mesma atitude (froneō). Esta atitude se faz representar pela consideração do outro em prioridade a si mesmo. Ao invés de se deixarem ser impulsionados pelo natural desejo egocêntrico e vaidoso, que governa, na maioria das vezes, as atitudes humanas, eles deveriam buscar uma postura de humildade tornando o outro mais importante e valoroso que cada um na sua individualidade. Expresso de outra maneira, aquilo que compõe a vida do outro deve ser incluído em nossa vida no mesmo grau de importância que damos às nossas coisas pessoais. Nesse sentido, a vida cristã é eminentemente altruísta ao ponto máximo de alguém ser capaz de dar a própria vida em favor de outro. É exatamente esse alto grau de consideração pelo outro, e de desprendimento de si mesmo e de sua cultura, que encontramos no modelo de Cristo. Observando o conteúdo do texto e interpretando-o desde uma ótica missiológica, o que vemos é uma atitude assumida por Jesus que deve orientar o nosso envolvimento na propagação do Evangelho.

A repetição da expressão “outro” é feita aqui de maneira proposital, porque é o outro que motiva a atitude de Jesus. Teologicamente, considerando o conceito de missio Dei, é o desejo de Deus pela reconciliação com o ser humano, no restabelecimento das relações quebradas pelo pecado, que impulsiona a sua encarnação em Jesus. O outro, no texto apresentado, alvo da consideração divina que se sobressai a qualquer outra agenda, é o ser humano caído. Por causa dele, Jesus toma a atitude de esvaziar-se (kenoō) de tudo o que o caracteriza como Deus para assumir a forma humana a fim de comunicar, com sua vida e obra, a boa notícia do Evangelho.

É claro que qualquer consideração sobre o status divino de Jesus não passará de especulação imaginativa, mas vale aqui o esforço para conseguirmos elaborar a profundidade da atitude, que incluiu seu esvaziamento, que servirá para nortear aquilo que ele requer de nós. Imaginemos o estado divino como o ápice de qualquer projeção humana de plenitude e satisfação, além do ilimitado poder e infinitude. É dessa condição perfeita que Jesus abre mão por considerar mais importante a necessidade de aproximação com o ser humano e com o propósito de resgatá-lo de suas mazelas. Ele não apenas abre mão de sua divindade, mas assume a condição idêntica à do outro que ele deseja alcançar. Ao querer aproximar-se do ser humano ele se torna alguém semelhante. Mas há um aspecto ainda mais interessante nesse processo que é o fato da condição humana assumida por Jesus ter sido aquela que representava a maioria das pessoas do contexto da época. Ele não se torna um ser humano qualquer, a despeito da situação cultural, social, econômica ou política do seu tempo. Ele assume a condição de um ser humano comum, simples, da periferia da sociedade judaica, da região da Galileia.

Jesus não somente esvazia-se da condição divina, mas assume a forma cultural de um judeu da época. Alguns poderiam até pensar que dada a eleição de Israel por Deus e aliança histórica com esse povo, essa seria a cultura do próprio Deus. Esse equívoco, inocente e exclusivista, significa o mesmo que desprezar a posição de Deus como criador e senhor de todos os povos e culturas. Sabemos que a esperança e promessa messiânica eram provenientes da aliança com o povo de Israel e sua revelação escriturística, mas a divindade não está restrita a qualquer cultura, e ao assumir a cultura judaica ela o faz com a intenção de continuar o seu processo comunicativo de proclamação do Evangelho.

2. Encontros no ministério de Jesus

Partindo, então, do pressuposto de que Jesus assume a cultura judaica para se comunicar primeiro com os judeus e imediatamente depois com aqueles com quem convivia naquele contexto, analisaremos algumas passagens interessantes, que relatam encontros de Jesus com pessoas, em que ocorre a interação entre o Evangelho e aspectos daquela cultura.

Nos relatos dos evangelhos podemos perceber que Jesus é plenamente judeu no que concerne às situações mais comuns e gerais da cultura. Nascido em uma família da tribo de Judá, na cidade de Belém, desenvolveu a sua infância e adolescência em Nazaré da Galileia como filho de um carpinteiro. Foi circuncidado, consagrado como primogênito no templo de Jerusalém e novamente levado ao templo aos doze anos, na transição para a adolescência. Induzimos que ele falava, se vestia, se comportava e agia conforme qualquer judeu galileu

Uma forma bastante significativa de percebermos sua integração na cultura é no comparecimento às festas tradicionais do povo. Vale ressaltar que as festas, ao mesmo tempo em que tinham origem e componente religiosos, extrapolavam o ambiente da religião tornando-se uma expressão da cultura popular ao incluir a peregrinação para Jerusalém, a ocupação dos espaços públicos, o uso de músicas, danças, comidas, etc. Os evangelhos comentam a participação de Jesus, ao longo dos seus anos de ministério, nessas festas (João 2:23; 4:45; 5:1; 10:22; 11:55; 13:1). Provavelmente, ele não participava apenas das festas de fundo religioso, mas também das festividades menores, típicas de qualquer cultura, além de refeições especiais, como convidado. Essa característica da vida de Jesus era tão marcante que ele diz ter sido estereotipado como “comilão e beberrão” (Lucas 7:34). O bom exemplo dessa integração plena na cultura talvez seja o relato do início de seu ministério ocorrido no casamento de Caná, registrado no capítulo 2 do livro de João. Essa rica passagem indica que a família de Jesus foi convidada para o casamento e que eles não apenas foram, mas, principalmente, impediram que a família do noivo fosse envergonhada diante dos convidados pela falta de vinho na festa. Toda a significância desse milagre, quase sem importância, parece voltar-se para uma questão cultural. Naquela cultura, havia grande expectativa sobre o anfitrião para que servisse da melhor forma possível, e com abundância, aos seus hóspedes.

Explorando um pouco mais esse hábito de Jesus de participar de refeições, temos o relato do encontro que ele teve com o chefe dos cobradores de impostos chamado Zaqueu (Lucas 19:1-10). O protocolo da cultura judaica pressupunha que um mestre, como Jesus, sendo uma pessoa temente a Deus e modelo para seus discípulos, não se sentasse à mesa com um cobrador de impostos. Sentar-se à mesa com alguém, naquela cultura, significava compartilhar a comida e a casa, um sinal de aproximação, aceitação e comunhão entre o anfitrião e o convidado. O cobrador de impostos, ou publicano, era considerado um pecador e traidor por representar a opressão romana sobre o povo judeu e por ser corrupto. Já um mestre judeu era uma pessoa destacada socialmente por seu conhecimento e capacidade de atrair e ensinar pessoas. Esperava-se dos mestres um comportamento exemplar e conforme a moral da cultura judaica. O comportamento de Jesus, no entanto, é contrário ao estipulado pela convenção cultural.

Antes de tentarmos concluir qual o critério adotado por Jesus para que em determinadas situações ele se adaptasse plenamente à cultura e em outras ele a confrontasse, vejamos outros encontros interessantes ocorridos em sua caminhada ministerial. João 4:1-30 narra o encontro de Jesus com uma mulher samaritana com muitas nuances e temas transversais. Particularmente, gostaria de atentar para pelo menos dois padrões culturais confrontados por Jesus nesse episódio. O primeiro padrão consistia no costume de não ser considerado de bom grado homens conversarem com mulheres desconhecidas em ambientes públicos (João 4:27). Uma abordagem furtiva poderia ser interpretada como assédio ou coisa pior.

O segundo padrão cultural, para os judeus, era o de não se relacionar com os samaritanos, considerados como impuros. A condição cultural era tão séria que em uma viagem, como a que Jesus estava fazendo, conforme narrado no texto, entre a região da Judéia e da Galileia, embora o caminho mais curto fosse cruzando o território de Samaria, os judeus preferiam contorná-lo (João 4:9). Jesus, no entanto, quebra esses dois protocolos culturais tanto passando por Samaria quanto conversando com uma mulher daquela região junto ao poço público ao meio-dia.

Ainda outra situação de confronto cultural se deu no encontro de Jesus com as crianças. Naquele contexto, as crianças eram desprezadas e alijadas da maioria das situações e ambientes da sociedade, principalmente dos espaços públicos ou dos que envolviam autoridades, pessoas de destaque e atividades de adultos. Na passagem de Lucas 18:15-17, vemos pessoas, talvez mães, tentando levar suas crianças para serem tocadas ou abençoadas por Jesus. Não sabemos se a intenção era a expectativa de cura de alguma enfermidade ou a simples bendição vinda do mestre, mas o fato é que como a situação feria o padrão cultural, os discípulos tentavam rechaçar as crianças. Jesus, então, não apenas repreende essa atitude dos discípulos como acolhe as crianças e as usa como referência metafórica no seu ensino.

Procurando encontrar algum princípio conclusivo que governa a atitude de Jesus ora integrando-se à cultura, ora contrapondo-se a ela, podemos afirmar que toda vez que uma prática cultural se interpõe ao acesso de Jesus às pessoas, ele se permite romper com o padrão visando o bem maior que é a comunicação do seu Evangelho. Nos casos em que as práticas culturais não passam de atividades cotidianas, que não ferem qualquer valor do Evangelho, Jesus se adapta plenamente a elas. O que percebemos é que, para Jesus, tudo aquilo que culturalmente estabelece uma barreira para o seu relacionamento com as pessoas passa a ser reorientado, para não dizer confrontado, mesmo que como consequência ele esteja passivo de receber algum tipo de censura.

3. Encontros na igreja primitiva

Certamente os encontros culturais na igreja primitiva representaram um grande desafio para a propagação do Evangelho nos seus primórdios. Considerando que o surgimento da igreja significava a superação do exclusivismo judaico no que se referia à fé em Deus, visando toda a humanidade, mudando o foco missiológico de uma perspectiva centrípeta para uma perspectiva centrífuga, o contato com outras culturas era não apenas inevitável como necessário. Usando uma expressão simplista de generalização, este tempo inaugurava o processo de propagação do Evangelho aos gentios. Mesmo essa expressão já é a prova de uma priorização cultural a partir dos judeus. Gentio era, por definição, todos os povos não-judeus. Na justificativa da adoção dessa perspectiva missiológica inicial, referindo-se aos outros povos como gentios, encontramos as palavras do apóstolo Paulo: “Não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê: primeiro do judeu, depois do grego” (Romanos 1:16) e “Novamente pergunto: Acaso tropeçaram para que ficassem caídos? De maneira nenhuma! Ao contrário, por causa da transgressão deles, veio salvação para os gentios, para provocar ciúme em Israel” (Romanos 11:11).

Gostaria de analisar dois encontros significativos ocorridos na igreja primitiva que podem nos ajudar a entender as dificuldades inerentes aos encontros culturais, bem como as crises pessoais e ministeriais, de fundo teológico, que deveriam ser confrontadas com o exemplo modelador de Cristo. O primeiro encontro é o de Pedro com Cornélio e sua família. Esta narrativa encontra-se em Atos 10:1-48; 11:1-18.

Essa é uma história rica em detalhes, uma das mais longas do livro de Atos, porque representa a expansão do Evangelho para além da geografia de dominância judaica, indicada nos capítulos anteriores como sendo as regiões da Judéia e Samaria. Ela também representa a propagação do Evangelho em direção aos gentios. O que torna o episódio ainda mais relevante e interessante são os contornos adicionais que Lucas faz questão de destacar para criar um clima e ambiente tenso e cheio de expectativas. Cornélio não é apenas um gentio. Ele é um soldado de alta patente do exército romano que exerce o seu comando em Cesaréia, capital da Judéia. Essa descrição acrescenta à natural resistência que um judeu possuía dos gentios, tidos como incrédulos e impuros, a figura do inimigo opressor.

É fundamental termos em mente que as informações adicionais apresentadas pelo autor sobre a fé e caráter de Cornélio, como um homem piedoso e bondoso, não eram conhecidas de Pedro, ainda que isso lhe tivesse sido informado pelos mensageiros. Quer dizer, suas dúvidas e natural resistência não parecem ter sido muito reduzidas devido a todo o preconceito que pairava sobre a situação. A maior prova da resistência de Pedro àquela categoria de pessoa é o relato da visão que ele teve anteriormente à chegada dos mensageiros. A visão, rica em metáforas, esconde uma profunda discussão teológica. Diante da necessidade humana mais básica, a fome, Pedro vê um grande pano descer do céu com todo o tipo de animais. Imediatamente recebe uma ordem para matá-los e comê-los. A força de sua tradição e compreensão teológica, pretensamente correta, é tão forte que mesmo diante da fome que sentia e da voz divina, ele não consegue raciocinar, refletir e abrir mão dela. Talvez ele estivesse pensando que aquilo fosse um teste, uma “pegadinha” de Deus, para verificar a firmeza de sua fé. Sua argumentação teológica é incapaz de extrapolar a tradição da Lei Mosaica, mesmo tendo convivido com Jesus e visto o seu exemplo. Em sua mente ele deveria estar processando toda a cultura religiosa que havia sido criada em torno do texto de Levítico 21, sobre aquilo que era impuro para se comer, e na qual ele havia desenvolvido a sua religiosidade. E mesmo vendo que todos os animais desciam do céu, ou seja, não eram animais da terra, conforme preceituava a condenação das Escrituras, além de metaforicamente serem puros, devido a esse descenso, Pedro se recusa a comer. Isso sem contar a ordem expressa recebida, por três vezes, com a informação de que ele não deveria considerar impuro algo que o próprio Deus havia purificado.

As barreiras culturais, com grande influência teológica, que impedia Pedro de conseguir incluir os gentios em sua missão de propagação do Evangelho não foram suplantadas naquele evento. Embora tendo pregado à família de Cornélio, conforme a ordem divina, ele e seus companheiros de viagem ficaram surpresos com o fato de aqueles gentios terem tido uma experiência espiritual idêntica a que os primeiros judeus-cristãos tiveram no dia de Pentecostes. Ao chegar a Jerusalém os judeus-cristãos, que tinham a mesma resistência de Pedro, tiveram que ouvir toda a explicação para poderem acalmar-se com aqueles fatos que se contrapunham à sua cultura e expectativa religiosa. A prova de que esse ambiente de mal-estar cultural permaneceu por algum tempo é a confrontação que Paulo fez sobre o comportamento de Pedro em outro episódio (Gálatas 2:11-12), fora a sua permanente defesa de um Evangelho livre da influência dos judaizantes.

De certa forma, relacionado a esse episódio, pelo menos no que se refere à dificuldade de superação das barreiras culturais de fundo religioso que os líderes da igreja primitiva enfrentaram, temos o chamado Concílio de Jerusalém. O fator motivador para aquela reunião, registrada em Atos 15:1-35, foi a imposição que estava sendo feita aos gentios, por parte dos judeus-cristãos da necessidade de circuncisão para que alcançassem a salvação. Embora o tema possa parecer simples para os dias de hoje, sabendo que essa condição jamais fez parte da mensagem do Evangelho pregado por Jesus, o que vemos aqui é exatamente a força da tradição cultural religiosa que permanecia na mente dos primeiros cristãos de origem judaica. Não fosse a intervenção de Paulo e Barnabé, que entendiam que essas barreiras deveriam ser superadas, por representarem um sério entrave à propagação do Evangelho, talvez aqueles conflitos permaneceriam por mais tempo.

Lucas registra que houve um grande debate com argumentações teológicas, relatos de experiências e situações contextuais que motivaram a uma tomada de decisão que pareceu misturar doutrina com estratégia. É muito claro no texto que existia uma preocupação estratégica com o inevitável encontro entre judeus e gentios nas diversas cidades do império. Mesmo entendendo que a circuncisão e outros preceitos judaicos funcionavam como um peso desnecessário e difícil de carregar, a liderança da igreja decidiu instituir algumas práticas que os gentios “fariam bem em evitar” (Atos 15:29), tendo a preocupação com a convivência com os judeus (Atos 15:21). A lista de regras de conduta possuía três ou quatro coisas que deveriam ser evitadas: alimentos provenientes de sacrifícios a ídolos, carne e sangue de animais sufocados e imoralidade sexual. Como não há qualquer detalhamento desses itens, podemos supor que estavam tratando de práticas bem conhecidas dos judeus e prescritas na Lei mosaica (Êxodo 34:15-17; Levítico 18:6-23; Levítico 17:10-16). Todos esses itens contrapunham-se a questões culturais típicas do contexto das cidades gentílicas do império romano. Havia uma quantidade muito grande de divindades greco-romanas que influenciavam a vida cotidiana, desde a prática de sacrifício de animais ao sexo cultual. Não apenas isso, mas a sexualidade daquela época, em geral, era bem diferente da atual. Eram comuns as relações homossexuais, além de orgias e incestos. Já a questão da carne de animais sufocados, que parece pertencer ao grupo de leis que visava a proteção da saúde do povo, para o período de peregrinação no deserto, acaba ficando anacrônica devido à nova configuração social do império, mais urbana, além da existência de outros processos de abate.

Embora tenha havido, segundo o relato, concordância por parte da liderança da igreja e dos missionários aos gentios, principalmente de Paulo, quanto a essa decisão, algum tempo depois o próprio apóstolo Paulo trouxe uma maneira um pouco diferente de abordar a questão da comida. Em suas cartas, aos romanos (Romanos 14:1-23; 15:1-13) e aos coríntios (1 Coríntios 6:12-20; 8:1-13; 10:23-33), ele deixa claro que a abstenção dessas práticas não era uma questão de doutrina teológica específica e sim de bom senso no tratamento, em amor, do conflito cultural, considerando a fraqueza daqueles que se escandalizavam, visando o bem das relações na comunidade da fé. Marcante é a repetição da expressão “todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm”, nas cartas de Paulo. A conveniência está associada ao dano que um ato pode causar à relação de convivência entre as pessoas, principalmente aos irmãos de uma mesma comunidade.

  1. Encontros no ministério de Paulo

Terminei o tópico anterior mencionando a participação do apóstolo Paulo na condução das comunidades gentílicas frente aos desafios culturais vividos pela igreja primitiva, mas gostaria de dar ainda um destaque especial à sua contribuição para o tema. No início desta unidade apresentei o modelo de Cristo, por acaso também baseado em um texto de Paulo, mas agora quero dar ênfase ao que estou chamando de modelo paulino para os encontros culturais ocorridos na propagação do Evangelho. O modelo paulino não é diferente do modelo de Cristo. Pelo contrário, ele é a aplicação daquele modelo, porém, expresso de maneira mais prática, a partir de uma teologia mais concreta. Podemos chamar o modelo paulino de tática do camaleão, ou seja, a adaptação ao contexto que surge com o objetivo de propagar o Evangelho.

O modelo paulino está expresso no texto de 1 Coríntios 9:19-23:

Porque, embora seja livre de todos, fiz-me escravo de todos, para ganhar o maior número possível de pessoas. Tornei-me judeu para os judeus, a fim de ganhar os judeus. Para os que estão debaixo da lei, tornei-me como se estivesse sujeito à lei, (embora eu mesmo não esteja debaixo da lei), a fim de ganhar os que estão debaixo da lei. Para os que estão sem lei, tornei-me como sem lei (embora não esteja livre da lei de Deus, mas sim sob a lei de Cristo), a fim de ganhar os que não têm a lei. Para com os fracos tornei-me fraco, para ganhar os fracos. Tornei-me tudo para com todos, para de alguma forma salvar alguns. Faço tudo isso por causa do evangelho, para ser coparticipante dele.

Sua capacidade de esvaziamento, de abstração e adaptação cultural é definida como “tornar-se tudo para com todos”. Por causa de sua forte consciência missionária na intenção de comunicar o Evangelho, todas as questões culturais tornam-se irrelevantes desde que não firam os princípios do mesmo. Sabemos de sua histórica disputa com os judaizantes que queriam impor seus costumes aos gentios, no entanto, temos os relatos de dois episódios em que ele se submete a práticas judaicas por uma questão estratégica. A primeira experiência acontece quando ele decide levar Timóteo como companheiro em suas viagens (ver: Atos 16:1-5).

O texto é claro em afirmar que Paulo decidiu submeter Timóteo à prática da circuncisão “por causa dos judeus que viviam naquela região”. Embora Paulo fosse contra a imposição da circuncisão aos gentios, ele entendeu que seria necessário que Timóteo, filho de pai gentio e mãe judia, fosse circuncidado para evitar qualquer resistência no contato com os judeus que eles encontrassem em suas viagens. Ali não se tratava de uma questão teológica referente à salvação com que estando atrelada àquela prática. Tratava-se apenas de uma questão estratégica, de se tornar um judeu para alcançar judeus, uma vez que ter ou não o prepúcio, ao mesmo tempo, não significava uma barreira para o alcance de gentios. Certamente esse evento significou um aprendizado para Timóteo, literalmente na pele, sobre o modelo paulino de adaptação cultural.

O segundo episódio em que Paulo se submete a uma prática cultural judaica acontece ao final da sua vida missionária quando viaja para Jerusalém. Preocupados com a reação que os judeus poderiam vir a ter, sabendo da presença do mesmo na cidade, que era considerado um pervertedor do judaísmo, os líderes da igreja de Jerusalém sugerem que ele realize um ato ritual típico da religião judaica (Atos 21:17-26).

Que faremos? Certamente eles saberão que você chegou; portanto, faça o que lhe dizemos. Estão conosco quatro homens que fizeram um voto. Participe com esses homens dos rituais de purificação e pague as despesas deles, para que rapem a cabeça. Então todos saberão que não é verdade o que falam de você, mas que você continua vivendo em obediência à lei (Atos 21:22-24).

Paulo aceita submeter-se àquele ritual, embora sem significado para a sua fé em Cristo, como uma maneira estratégica de tentar evitar um conflito com os religiosos judeus que o consideravam inimigo. A estratégia parece funcionar até a chegada de outros judeus vindos das regiões da Ásia onde Paulo pregava o Evangelho. Independentemente do resultado final da história, vemos que Paulo não tem problema em se readaptar à cultura judaica, mesmo em uma expressão religiosa, raspando a cabeça, fazendo a oferta específica e orando no Templo, tudo para evitar um confronto desnecessário e prejudicial à propagação do Evangelho em Jerusalém.

Conclusão

É importante observar que não há um padrão expresso para a maneira como a igreja deve agir nos encontros entre o Evangelho e a cultura à medida que exerce a missão de propagação do mesmo. No entanto, é fundamental entender que existem princípios bíblico-teológicos que norteiam a ação missionária. Esses princípios podem ser resumidos pelos modelos missiológicos de Cristo e do apóstolo Paulo, que não são discordantes entre si, mas apenas expressos didaticamente de formas diferentes. Estes princípios sugerem que, antes de tudo, ao ser confrontado por uma realidade cultural distinta, devemos ter uma atitude de humildade, estando dispostos a nos esvaziar dos nossos pressupostos culturais com o objetivo maior de estabelecer uma relação, a mais próxima possível, com o outro, alvo da missão e do amor de Deus. Requer-se de nós sensibilidade, disposição de abertura e uso do bom senso diante de cada situação que diariamente surge na caminhada cristã.

 

 

Sobre o autor

Marcos Orison Nunes de Almeida é Doutor em Estudos Interculturais pelo Fuller Theological Seminary, Califórnia, EUA; professor e atual coordenador de graduação online da Faculdade Teológica Sul Americana, em Londrina. É também pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil.

Contato com o autor: orison@ftsa.edu.br