14 jun Deus, humanidade e a ciência: o caso de Moisés no Egito | Por Adriel Lima
Introdução
O tema deste trabalho versa sobre a ciência e suas manifestações na relação entre Deus e a humanidade. Tomamos como referência, a análise do episódio em que Moisés se apresenta a Faraó, para pedir-lhe que deixe o povo de Israel ir embora do Egito e adorar o Senhor no deserto. Na ocasião, trava-se de uma disputa entre os sinais miraculosos operados através de Moisés e seu irmão, e aqueles praticados pelos mais importantes representantes da ciência egípcia.
Na teologia reformada, a ciência está compreendida no mandato cultural proferido por Deus na criação e registrado em Gênesis 1.28. O fazer científico, ao longo da nossa história, já esteve vinculado a práticas de magia e culto a diferentes divindades. Numa outra perspectiva histórica, a ciência também já rompeu todas as relações com o metafísico, admitindo apenas o conhecimento daquilo que pode ser controlado experimentalmente. Não obstante, presenciamos na modernidade o surgimento de fortes tensões entre conhecimento religioso e científico, que reverberam até nossos dias com alguma intensidade.
O engajamento no ensino das ciências e a percepção de comportamentos animosos no tocante a relação entre fé e ciência, tanto em setores da igreja como naqueles onde a ciência é construída, serviram de estímulo para essa investigação.
Definição do problema
No antigo Egito, não temos apenas o desenvolvimento tecnológico agrário insuflado pelo delta do Nilo, os relatos históricos fazem referência aos papiros médicos que registravam uso de substâncias para cicatrização e anestesia, além de procedimentos cirúrgicos para tratamento de ossos quebrados e dissecação de vasos sanguíneos. Segundo o historiador Warren R. Dawson, a religiosidade dos Faraós impulsionou as técnicas físico-químicas de embalsamento, uma vez que acreditavam na necessidade de preservação de seus corpos para que as almas os ocupassem na eternidade. A ciência médica é apenas um exemplo, dentre muitos, do quanto os egípcios da antiguidade contribuíram para o desenvolvimento científico.
O relato bíblico nos conta como o povo hebreu passou a habitar no Egito e se reproduziu exponencialmente, a ponto de chamar a atenção do Faraó. O crescimento populacional dos hebreus, na visão do governante egípcio, ameaçava o império e precisava ser controlado. No livro do êxodo, lemos que a estratégia adotada pelo Faraó foi, primeiramente imprimir um regime de trabalho escorchante aos hebreus, e em seguida impor um controle de natalidade sobre as mulheres israelitas, determinando às parteiras que matassem todas as crianças do sexo masculino. O menino Moisés, ao nascer, é escondido por três meses e após esse tempo foi colocado no rio, sendo, em seguida, salvo pela filha de Faraó que contrata, sem saber, a própria mãe do menino para cuidar dele até quando crescesse e fosse morar no palácio. Assim, Moisés foi alguém com uma espécie de dupla nacionalidade, experimentando uma primeira socialização entre hebreus e em seguida desenvolvendo-se como adulto na cultura egípcia. Entretanto, seu senso de justiça não permitiu que assistisse passivamente, a opressão brutal praticada por egípcios contra os hebreus. Ao matar o egípcio, Moisés rompe definitivamente com a vida no palácio e se exila no deserto por 40 anos. No entanto, sua compreensão do mundo egípcio e do mundo hebreu, será determinante no julgamento do Egito, praticado por Deus através dele.
O entrave de Moisés com Faraó pode ser analisado sob diferentes perspectivas, todavia, escolhemos destacar a função da ciência neste confronto. Não está em discussão a moralidade da ciência, mas as suas finalidades. A mensagem comunicada, quando as serpentes produzidas pelas ciências “ocultas” dos sábios, são devoradas pela serpente que se originou do bordão de Arão, parece-nos apontar para o fato de que uma ciência sem a glória de Deus pode servir a impiedade, tornando-se menor e pouco eficaz.
Objetivo
Com base nos eventos que marcaram a disputa entre Moisés e Faraó pela retirada dos hebreus do Egito, especificamente aqueles que denotam caráter científico e religioso, bem como nos relatos de outras fontes bibliográficas, esta investigação buscará demonstrar quão condenável é a associação da ciência com uma religiosidade, construída para legitimar o poder humano desprovido de qualquer justiça.
O trabalho também tem, como objetivos específicos: descrever o ambiente cultural do Egito, no que concerne às práticas religiosas e científicas, quando da permanência do povo hebreu entre eles; identificar as relações entre as práticas religiosas e científicas no Egito; caracterizar a mensagem de Deus ao Faraó e suas respostas, como um arquétipo de eventos históricos onde a ciência reivindica poderes religiosos.
Fundamentação teórica
O conceito clássico de magia e sua relação com a religiosidade
Em sua análise de autores consagrados como James Frazer, A. R. Radcliffe-Brown, B. Malinowski e Émile Durkheim, dentre outros de mesma tradição, no que diz respeito ao conceito de magia tecido na antropologia, aponta diferenças na forma como o assunto é tratado por eles.
Em termos preliminares, magia corresponde a manipulação do mundo natural, apoiado em vontades humanas e um certo conhecimento de causa e efeito. Como exemplo, podemos imaginar o mágico que sopra fumaça aos céus para que nuvens apareçam.
Embora a magia esteja presente desde as mais primitivas sociedades humanas, somente no século XX tornou-se uma categoria relevante de análise antropológica. Para Pires, “Frazer fundou a forma de estudar a magia em relação a ciência e religião” (2010, p.5). Para o autor
a magia é anterior à religião e que a transição entre ambas teria se dado gradualmente à medida que os homens notavam que nem sempre o rito mágico atingia os resultados esperados e concluíam, a partir disso, que deveria haver outros seres que governavam a ordem das coisas. (ibidem, p.4)
Ao contrário de Frazer, Durkheim (1917) acreditava ser a religião, fonte da magia e da ciência. Segundo o sociólogo francês, “a ciência, têm origens religiosas. Vimos que o mesmo vale para a magia e, consequentemente, para as diversas técnicas que dela derivam” (apud Pires, 2010, p.8).
Trazendo os autores Mauss e Hubert (1904) para a discussão, Pires (2010) apresenta um entendimento dos mesmos sobre a magia como integrante, ao mesmo tempo, da vida mística e científica do primitivo. No tocante a relação com a religião, os autores afirmavam que enquanto a magia atua sobre o objeto forçando o efeito, a religião busca conciliar causa e efeito.
Ao estudar povos do Pacífico Ocidental, B. Malinowski concluiu que a magia é a forma complementar do conhecimento prático, responsável pelo sucesso para além da perfeição técnica. Em outras palavras, o saber técnico, por mais aperfeiçoado que seja, sem a magia, é insuficiente para alcançar êxito permanentemente. Segundo Pires, “para Malinowski a mágica é produto das limitações humanas de pensamento, resultante de buracos no conhecimento empírico” (2010, p.15).
Para Radcliffe-Brown, outro autor analisado por Pires, ficava claro um desacordo entre o que é mágico e o que é religioso na comparação entre as visões de Frazer, Durkeim e Malinowski. O autor argumenta em favor do estudo da religião como agente de formação e manutenção da ordem social, não sendo relevante sua veracidade.
A ciência e sua relação com a magia
Embora a magia seja considerada na atualidade uma pseudociência, é fato que ela pavimentou a estrada com destino a revolução científica na qual se instalou a ciência moderna (GUERCIO, 2020). Entretanto, ao florescer com o iluminismo, esta ciência tratou de romper com a história que a produziu. Trabalhos como Novum Organum de Francis Bacon, o Discurso sobre o método de René Descartes, e a Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant, são exemplos de esforços positivistas para estabelecer padrões universais de classificação do que é científico, fazendo distinção do discurso metafísico e religioso. Para Chalmers,
a caracterização geral da ciência buscada pelos filósofos pretendia ser universal e a-histórica. Universal, no sentido de que se tencionava que fosse igualmente aplicada a todas as teses científicas (…), seria a-histórica no sentido de que deveria aplicar-se tanto às teorias passadas como às contemporâneas e às futuras. (1994, p.15).
Segundo o autor, a estratégia positivista foi bastante equivocada para aqueles que desejavam defender a ciência, uma vez que desprezava métodos e padrões implícitos em atividades de conhecimento pouco ortodoxas. Assim, só é cabível tratar de padrões e métodos dentro do campo de estudo que os produziu, sendo sua transposição para outra área, um enorme risco de validade. Modelos de análise da física não podem ser aplicados à psicologia com a mesma premissa de valor, por exemplo.
Sobre a relação da magia com a ciência moderna Guercio afirma que
o desenvolvimento científico demandou a aprendizagem da magia na medida em que esta ampliou a capacidade humana no tocante a prática da experimentação bem como o reconhecimento da existência de outros paradigmas, contribuindo na ampliação dos horizontes do conhecimento para configurar o que hoje atribuímos de o pensamento moderno. (2020, p.3)
Portanto a ciência moderna parece ter herdado da magia seu componente intervencionista e manipulador da natureza, a fim de dominá-la em seu benefício.
O contexto do Egito Antigo
Ao contrário do que podemos imaginar a partir dos muitos referenciais ocidentais sobre magia, como algo reprovável, no Egito, tal prática era socialmente aceita, possuía validade legal, além de integrar a religião (RIBEIRO, 2018). Os egípcios não observavam a religião como um compartimento da vida, mas como elemento constituinte daquela civilização. O termo Heka é aquele utilizado para designar a magia egípcia, sendo entendida por alguns como a própria força criadora. Portanto, o pressuposto de que a magia é inferior, não se aplica ao contexto do Egito antigo.
A religião egípcia possuía uma dimensão invisível, denominada Maat, responsável por assegurar o equilíbrio e a ordem do mundo visível, e uma dimensão visível, caracterizada pelos ritos e utensílios de culto e veneração. Entretanto, como afirma Ribeiro “a Maat fornecia-lhe o plano de fundo ao mesmo tempo em que também afetava as esferas da Política e da Justiça de forma geral, as quais possuíam sua significância e funções religiosas” (2018, p.77), o que Assmann (2006) denominou como triângulo egípcio (figura 1).
Figura 1: triângulo egípcio (Assmann apud Ribeiro, 2018, p.77)
Portanto, não é difícil concluir como a magia estava imbricada com religião e poder político no Egito. Logo, o serviço desempenhado por sacerdotes, também chamados de “magos”, estava ligado diretamente aos reis egípcios, auxiliando na solução desde problemas de saúde a militares (RIBEIRO, 2018).
Quanto às divindades, os egípcios não economizavam. Dentre as muitas, Walton (2007) destaca aquelas relacionadas com as pragas que antecederam a libertação dos hebreus. Knum, guardião do Nilo; Hapi, espírito do Nilo; Osiris, cujo sangue era o Nilo; Hect, deus da ressurreição que possuía forma de rã; Hathor, deusa-mãe que tinha forma de vaca; Apis, touro do deus Ptáh e símbolo de fertilidade; Mnevis, touro sagrado de Heliópolis; Imotepe, deus da medicina; Nut, deusa do céu; Ísis, deusa da vida; Set, protetor da colheita; Rá, Aten, Atum, Hórus, todos deuses do sol; Osiris, o doador da vida, divindade ligada ao Faraó (HIIL & WALTON, 2007).
Os rituais de magia tinham uma importância fundamental no processo de legitimação do faraó como divindade e distinguindo-o do restante da humanidade. Como afirma Souza,
ao ser colocado como o único intermediário entre homens e deuses, o faraó era teoricamente o responsável pelos cuidados diários de todas as divindades. Na prática, os sacerdotes atuavam como seus representantes, mas na iconografia, somente o rei era representado em um contato mais íntimo com as imagens divinas. (…) As raras aparições públicas do faraó, sempre envolto com símbolos mágicos e de poder, ajudavam na formação de sua imagem divina. Em certas circunstâncias todos esperavam que o próprio faraó executasse as maiores liturgias diante de uma multidão de seus súditos. Essa era uma ocasião para se ver o rei, os deuses em suas barcas divinas, para seguir o forte aparato da procissão faraônica. O ritual realizado diante de um grande público anunciava de forma explícita a legitimidade divina do faraó. (2009, p.5)
Concluímos então, que a magia inserida na religião, e constituinte comum da civilização egípcia, cimentava uma estrutura de poder centralizado na figura do faraó, assegurando-lhe a condição de não ser questionado e desobedecido em todas as suas determinações.
A mensagem de libertação no encontro de Moisés com os sábios do Egito
O Egito havia se tornado o grande império do mundo antigo, exportando sua cultura para todos os povos em sua volta. Suas obras de engenharia civil atraíam a atenção pela grandiosidade, mas também pela forma como eram conduzidas mediante trabalho servil dos povos imigrantes. O relato bíblico no livro do Êxodo (Êx.1.11-14) nos informa sobre a opressão com trabalhos forçados a que eram submetidos os hebreus no Egito. Um regime ainda mais pesado na medida em que o povo se multiplicava. A carga de trabalho escorchante e o controle de natalidade imposto aos israelitas constituíam a estratégia egípcia para impedir toda e qualquer organização coletiva em torno de um projeto de liberdade (v.16).
Moisés nasce e cresce nesse ambiente de injustiça. Entretanto, sua boa vida no palácio do rei parece ter o impedido de perceber e se indignar com a situação do povo hebreu. A mudança de mentalidade levou bastante tempo para acontecer. Somente aos quarenta anos de idade, Moisés se aproxima dos hebreus com um outro olhar, capaz de identificar a injustiça que eles sofriam. Seu ato violento para vingar o hebreu oprimido o levou ao exílio no deserto do Sinai, onde passaria mais quarenta anos experimentando uma relação com o Deus de Israel (Atos 7.23-32).
Moisés chega ao deserto como egípcio (Êx. 2:19) mas após quarenta anos retorna ao Egito como líder hebreu, escolhido por Javé para libertar seu povo. Destaca-se nesta metanoia, o conhecimento de uma “magia” proveniente de Javé (Êx. 4.1-7) a qual lhe qualificou para apresentar-se como líder do povo e também questionar o faraó. Ao ser provocado por Moisés e Arão, a deixar o povo hebreu ir embora, o faraó afirma claramente não reconhecer a divindade daquele povo (Êx.5.2), fato que ilustra bem a arrogância de tal governante frente ao que entendeu como uma simples revolta de trabalhadores (v.4).
O primeiro embate científico-religioso entre Moisés e faraó é marcado pela transformação de varas em serpentes (Êx.7.10-12). A serpente, no contexto do Antigo Oriente Próximo, e mais especificamente no Egito, era o animal mais representado na arte, simbolizando poder, sabedoria e imortalidade. Sua figura estava sempre associada às divindades (PESSOA, 2020). Assim, quando a serpente produzida pela vara de Arão devora as demais serpentes, a mensagem comunicada era de soberania do Deus de Israel sobre as divindades egípcias.
Nos dois embates seguintes, quando as águas do Nilo se tornam em sangue (Êx. 7.19-25) e na infestação de rãs (Êx.8.1-15), a magia egípcia concorreu reproduzindo os mesmos sinais. Entretanto, a partir da praga dos piolhos, os magos de faraó não conseguiram reproduzir os feitos com sua ciência, atribuindo o fato ao dedo de Deus (Êx.8.18-19). Então, começava a ficar claro as limitações dos poderes de faraó e suas divindades, lastreadas por toda a ciência egípcia, frente as manifestações do Deus de Moisés. Isto culminaria com a libertação do povo hebreu.
Relações entre Ciência e Religião
Como se pode notar, a sociedade do antigo Egito é um exemplo muito rico de como a tríade Política, Religião e Ciência atua na organização das sociedades humanas ao longo da história. Se o mundo ocidental vem buscando nos últimos 5 séculos, através dos esforços de alguns países, garantir constitucionalmente a laicidade do estado, embora na prática, nem sempre isto seja efetivo, o mesmo parece não acontecer na relação entre ciência e religião.
É importante destacar que o pensamento científico ocidental foi bastante influenciado pela religião judaico-cristã, pois como afirma Hooykaas,
Parece difícil acreditar que, embora o pensamento europeu tenha sido profundamente influenciado tanto pelas fontes greco-romanas como pelas fontes bíblicas, somente as primeiras possam ter deixado a sua marca nos nossos processos de pensamento científico. (2021 p.17)
Um exemplo disso foi o domínio do homem pela natureza, sustentado pelo movimento da reforma protestante e abraçado como ideal científico por nomes como Francis Bacon, o qual defendia a investigação das obras de Deus com a finalidade de alcançar benefícios para humanidade (HOOYKAAS, 2021 ).
A doutrina cristã que moldou este novo momento da ciência também gerou tensões quando Charles Darwin, no final do século 19, escreve sobre as origens das espécies. A hipótese de Darwin parecia não se conciliar com o relato de Gênesis. Anos mais tarde, esse episódio alimentaria uma narrativa sobre o conflito entre ciência e religião, ainda presente em nossos dias (MCGRATH, 2020).
O surgimento do campo de estudo em ciência e religião é atribuído ao trabalho de Ian G. Barbour, Questões em ciência e religião, publicado em 1966. Seus esforços o levaram a concluir que existiam quatro tipos de relação entre ciência e religião: conflito, independência, diálogo e integração. No modelo do conflito, para que uma exista, a outra precisa ser destruída, ou seja, a ciência enxerga a religião como uma ameaça ao desenvolvimento científico, enquanto a religião vê a ciência como um grave desvio do propósito divino. A relação de independência pode ser entendida como uma resposta ao conflito, com o objetivo de preservar o desenvolvimento autônomo de cada uma. Assim, crença religiosa não tem haver com ciência, bem como os avanços da ciência não devem, nem estão implicados na religião. O diálogo é o tipo de relação que admite o aperfeiçoamento de uma área pela contribuição da outra, enquanto a integração recusa a proposta de compartimentar a busca humana por conhecimento, propondo que os componentes espirituais e físicos estão imiscuídos nesta jornada. O mundo ocidental atualmente, graças aos trabalhos de John William Draper, Andrew Dickson White, Daniel Dennett e Richard Dawkins, dentre outros, é muito influenciado pela narrativa do conflito, embora na América do Norte e Europa Ocidental, o modelo de independência seja dominante. Já entre pesquisadores da Ásia, a perspectiva de diálogo e integração é prevalente (MCGRATH, 2020).
Vale ressaltar que os exemplos utilizados para fundamentar a relação de conflito entre ciência e religião, são extraídos do período histórico que antecede a chamada “revolução científica”, onde a ciência estava inserida na religião. Como afirma McGrath,
Tensões e conflitos presumidos entre ciência e religião, como a controvérsia de Galileu, costumam ter mais a ver com políticas papais, lutas pelo poder eclesiástico e questões de personalidade do que com tensões fundamentais entre fé e ciência. (2020, p.31)
Portanto, estamos diante de homens e mulheres que, antes de fazer ciência, estavam comprometidos com uma instituição religiosa. O caso do frade dominicano Giordano Bruno é um exemplo. Embora defensor das ideias científicas de Copérnico sobre a cosmologia, Bruno utilizou tais ideias para defender um novo modelo de religião para corrigir os males da Reforma e Contrareforma na Europa, sendo por isso condenado pela igreja católica (SHACKELFORD, 2020).
Constatações e conclusões
O caso de Moisés no Egito é um excelente exemplo de como a superposição dos poderes, científico, político e religioso, favorece um ambiente de totalitarismo. Um ambiente onde a exploração é legitimada. Onde, quem se opõe ao sistema vigente, é perseguido e calado. A mensagem de libertação produzida por Deus através de Moisés nos comunica primeiro que o poder do Criador não pode ser manipulado pela humanidade para prática de injustiças. Embora tenhamos acesso e capacidade, pela ciência, de produzir coisas fantásticas, assustadoras e espantosamente fascinantes, devemos nos lembrar que somos reflexos de um ser para além desta faculdade. Um ser cujo poder excede o nosso entendimento, que ama a justiça e a retidão, agindo na história para nos lembrar isso. Toda a estrutura religiosa no Egito, bem como a ciência acumulada por aquele povo, convergia para sustentar um regime político. O crescimento desse império alcançou um nível onde, o abuso de autoridade, a exploração de pessoas, a xenofobia, dentre outras práticas injustas, eram, não só toleradas como também estimuladas pelos governantes. Através de Moisés, Deus estava dizendo, basta!
A mensagem de libertação também comunica a importância de não ceder a tentação do poder absoluto. A sedução de fazer o que quiser sem ter a quem prestar contas. Os três centros de poder identificados na narrativa do Êxodo, todos essencialmente humanos, precisam de autonomia e interdependência. O poder da ciência, com seus métodos próprios, aplicado na compreensão dos fenômenos naturais, onde também se inserem as questões humanas com interfaces para vida em sociedade, centro do poder político, e para o transcendente, onde atua o poder religioso. Como podemos notar na figura 2, a tríade Ciência, Religião e Política se manifesta na humanidade como domínios da interface com a Natureza, Deus e Sociedade, respectivamente. Possuem centros de atuação distintos, embora suas impressões sejam verificadas na constituição da própria humanidade. A autonomia garante o êxito na investigação de cada objeto, enquanto a interdependência assegura que as descobertas e conclusões de cada dimensão preservam a integridade do ser humano. Portanto, a vida deve resultar da harmonia entre o conhecimento do que existe (Ciência), a forma como participamos da criação (Política) e como nos relacionamos com o que transcende nossa existência (Religião).
Figura 2: representação da tríade de poder (Fonte: autor)
Adicionalmente, a experiência de libertação dos hebreus aponta para existência de um Deus pessoal que participa da história humana, o que denominamos na teologia cristã, imanência. Assim, assumimos que Deus atua na natureza e sociedade para se fazer conhecido e manifestar sua justiça. Isto pode ser representado na figura 3. Não se trata de prevalência do poder religioso, mas da imersão de nossa realidade na dimensão do Deus transcendente.
Figura 3: representação da tríade na perspectiva cristã (Fonte: o autor)
Implicações práticas e missiológicas
Vivemos, na história recente, recorrentes tensões entre os poderes político, religioso e científico. Nesta avaliação vamos nos deter na relação entre ciência e religião. Como vimos, o cientificismo atacou frontalmente a fé cristã na tentativa de suplantá-la. Existem muitos jovens universitários cujas mentes foram capturadas pelo ceticismo. A sedutora ideia de que a ciência nos dará todas as respostas e solucionará todos os problemas, coloca-nos numa posição semelhante ao pináculo de onde Jesus foi convidado pelo diabo, a se lançar, na certeza de que os anjos lhe sustentariam (Lucas 4.9-10). É preciso lembrar que a ciência pode muito, mas não pode tudo. Cabe-nos encontrar esses limites e respeitá-los.
Algumas abordagens da igreja frente ao tema parecem mais contribuir para ruptura com a dimensão da fé na vida universitária, como se fosse possível ter uma vida acadêmica e outra religiosa. Isso, quando não ocorre, por parte de líderes cristãos, o desestímulo de seus jovens à carreira científica, sob o pretexto de se perder a fé. Assim, vamos contribuindo para um vácuo da presença cristã na construção da ciência nas mais diferentes áreas. Discussões no campo do direito, da história, da saúde, da engenharia, da educação, dentre outras, perdem de vista o argumento teleológico que nos aponta para o criador de todas as coisas, exatamente pela ausência de interlocutores com tal cosmovisão na academia.
A mensagem cristã tem implicações para todas as pessoas na integralidade de suas vidas. Isto quer dizer, dentre outras dimensões da vida, que em Jesus, temos reconciliado o modo de fazer ciência (Colossenses 1.20). Não se trata de anular nossa capacidade criativa, investigativa ou inventiva, mas a arrogância do saber que leva a prepotência e a opressão do outro. Em lugar disso, apoiamos nossas descobertas e avanços na perspectiva de conhecer mais e melhor o Senhor de tudo, aquele do qual e para o qual todas as coisas foram feitas (João 1.3; Romanos 11.36). Movidos por esse espírito seremos capazes de desenvolver sem destruir e transformar para diminuir a exclusão. Portanto, sejamos agentes desta reconciliação da fé com a ciência, para o bem comum da humanidade.
Referências
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Referência: LIMA, Adriel. Deus, humanidade e a ciência: o caso de Moisés no Egito. Revista Práxis Missional, Londrina PR, ano 5, edição 9, junho de 2023. Disponível em: https://praxismissional.com.br/deus-humanidade-e-a-ciencia-o-caso-de-moises-no-egito-por-adriel-lima/
Sobre o autor – Adriel Lima é bacharel em Teologia, membro da equipe pastoral na Primeira Igreja Batista do Engenho do Meio, Recife-PE.
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