A NOÇÃO DE REINO DE DEUS EM PAULO E A INTEGRALIDADE DA MISSÃO | Por Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

A expressão “reino de Deus” ocorre apenas doze vezes nos escritos de Paulo (sendo que em duas delas o reino é do Messias e em uma vez se fala, no mesmo verso, do reino do Messias e de Deus). O termo basileia é pouco usado por Paulo, e sua maior concentração está em 1 Coríntios (4.20; 6.9-10; 15.24,50). Fora desta epístola, temos: Rm 14.17; Gl 5.21; 1Ts 2.12; Ef 5.5 & Cl 1.13 (reino do Messias e de Deus); Cl 4.11 (e duas vezes nas Pastorais 2Tm 4.1,18 e uma em 2Ts 1.5 – estas cartas não são consideradas, pela maioria dos estudiosos, de autoria do próprio Paulo, mas de seus seguidores em uma geração posterior). Ao contrário dos Evangelhos Sinóticos em que a expressão é usada amplamente, nos escritos de Paulo a noção do senhorio do Messias Jesus é que ocupa um lugar de destaque. Uma das razões por que essa diferença ocorre tem a ver com a compreensão da expressão. Fora do ambiente tipicamente judaico a noção de “Reino de Deus” não transmitiria os sentidos que a expressão acumulou na cultura e religião judaicas. Sentidos que a noção do ‘senhorio’ do Messias seria mais adequada para transmitir.

Se pensamos na integralidade da missão, notaremos que a apresentação paulina do Reino de Deus, ainda que econômica em termos quantitativos, é bastante rica em termos teológicos, de modo que a reflexão sobre este conceito paulino é de relevância para o aprofundamento de nossa prática e pensamento sobre a integralidade da resposta do povo de Deus à integralidade da ação do próprio Deus. Neste artigo discutirei a questão em dois momentos: primeiro, uma descrição das características do Reino de Deus no conjunto das passagens paulinas; depois, uma reflexão mais específica sobre a dimensão apocalíptica do Reino de Deus em 1 Co 15.20ss.[1]

  1. Características do Reino de Deus

Organizo esta primeira reflexão, genérica, sobre as características do Reino de Deus a partir de um agrupamento das passagens em que o termo ocorre em termos de afinidade temática.

(a) Caracterização do Reino: “Porque o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça e paz, e alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17); “Porque o reino de Deus consiste não em palavra, mas em poder” (1 Co 4.20).

Como no caso da concepção de Deus, Paulo mantém-se no âmbito da concepção judaica do Reino de Deus, ressignificando-a, porém, à luz de sua experiência e compreensão do Messias (e todas as mudanças que ela acarreta em sua teologia como um todo). Nas duas passagens acima, a noção de Reino de Deus é contrastada com duas noções concorrentes; (1) a noção oficial do Judaísmo, expressa nas formas predominantes de doutrina e identidade por fariseus, saduceus e (embora criticamente) essênios. A soberania de Deus não é definida pelo cumprimento de normas legais de pureza, pois estas servem apenas para distinguir pessoas e povos uns dos outros, classificá-los em lugares opostos e impedir o acesso ao reino de Deus a quem não segue literalmente a identidade proposta; (2) a versão arrogante da fé messiânica defendida por oponentes de Paulo em Corinto, possivelmente da parte de “patrões” que se sentiam diminuídos em status no modelo igualitário de comunidade messiânica em Paulo, segundo a qual ele não poderia ser apóstolo, porque seu apostolado era marcado por sofrimentos e prisões – sinais de que não estaria sendo fiel ao Messias.

Em que, então, consiste o reino (a soberania) de Deus? Primeiro, no poder do Evangelho (1Co 4.20, lido à luz de Rm 1.16-17)[2] – o reino de Deus consiste em poder para libertar as pessoas escravizadas ao pecado e, em última instância, libertar toda a criação.[3] No co-texto da carta, precisamos entender o poder de Deus à luz de 1 Co 1.18-25, como um poder absolutamente antagônico e oposto às formas de exercício do poder pelos governantes humanos e, em especial, de forma antagônica à expectativa de poder ‘revolucionário’ da expectativa messiânica oficial do Judaísmo (libertar Israel do domínio do Império Romano) – ora, a fraqueza de Deus é mais poderosa do que o poder humano. Poderíamos aproveitar o termo usado por Paulo no capítulo 1, “os judeus pedem sinais”, para mostrar que o poder do Reino, em Paulo, não está ligado diretamente a ‘milagres’ ou atos poderosos de libertação terrena – mas ao poder da cruz que liberta a pessoa e a criação inteira da escravidão ao pecado, lei, carne, poderes e morte.

Segundo, o reino de Deus consiste em um novo estilo messiânico de vida, caracterizado por justiça, paz e alegria – expressões da presença e ação do Espírito de Deus na vida das comunidades e dos indivíduos seguidores do Messias (aqui temos uma ligação deste tópico com Gl 5.15ss sobre o fruto do Espírito e a vida na carne, bem como um vínculo com Rm 8 – texto no qual não aparece a expressão reino de Deus). Os três termos presentes neste verso de Romanos são amplamente usados por Paulo em várias de suas cartas e poderíamos esboçar uma síntese de seu significado como a descrição de um estilo de vida marcado por: liberdade (que é o efeito da justiça de Deus na vida de escravas e escravos do pecado, etc.) para viver uma vida semelhante à vida do Messias Jesus (tema forte em Romanos); unidade na vida comunitária, sem que a diversidade de dons, identidades pessoais e pensamentos seja anulada (tema forte em Colossenses); e a felicidade de viver uma vida que faz sentido e tem durabilidade, que é um dos temas principais de Filipenses.

(b) O Reino como herança futura: (1) inacessível a quem não é fiel a Deus na vivência da fé-fidelidade messiânica. Estas admoestações de Paulo não se dirigem a pessoas ‘fora’ da ekklesia, mas a quem já faz parte do Reino de Deus: “Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados[4], nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o reino de Deus” (1 Co 6.9,10); “Isto afirmo, irmãos, que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorrupção” (1 Co 15.50); “invejas, bebedices, glutonarias e coisas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos declaro, como já, outrora, vos preveni, que não herdarão o reino de Deus os que tais coisas praticam” (Gl 5.21); “Sabei, pois, isto: nenhum incontinente, ou impuro, ou avarento, que é idólatra, tem herança no reino do Messias e de Deus” (Ef 5.5); (2) acessível, porém, aos que se mantêm fiéis: “sinal evidente do reto juízo de Deus, para que sejais considerados dignos do reino de Deus, pelo qual, com efeito, estais sofrendo” (2 Ts 1.5).

Nestas passagens, o foco da discussão recai sobre as comunidades de seguidores de Jesus. Ao tratar o reino de Deus como herança Paulo ressignifica o motivo bíblico da terra como herança de YHWH para Israel (cf., por exemplo, Êx 23.30; Dt 1.38–39; Is 49.8; Sl 25.13; 37.9,11,22; 1 Mc 2.56). Como a libertação do Messias Jesus não é delimitada nacionalmente, também não pode ser delimitada geograficamente, de modo que a herança é deslocada da “terra” para o “reino de Deus” – em que o reino de Deus denota a vida plena na liberdade e comunhão com Deus. Visto como a herança escatológico, o reino de Deus é descrito, por um lado, como inacessível a quem não permanece fiel ao Messias. Por outro lado, o Reino é acessível às pessoas que, em fidelidade ao Messias, sofrem em função de sua esperança. Mais interessante do que a discussão sobre as listas de pecados aqui presentes, é a função ético-teológica dos textos: somos salvos por esperança, sim (cf. Rm 8), mas não podemos usar a fidelidade de Deus salvador como desculpa para viver vidas infiéis ao seu caráter demonstrado na vida do Messias (cf. a discussão em Rm 6 ou em Gl 5, ou em Tg 2).

Uma vez que vivemos sob a soberania de Deus, a vida vivida aqui na terra está indissoluvelmente ligada à vida porvir, na nova terra. Certamente estes textos refletem, subjacentes a eles, uma polêmica teológica nas comunidades cristãs do período paulino – de diferentes modos, Paulo era acusado de promover um ethos relaxado com sua concepção de graça e da relação da graça com a lei. Paulo, em vários lugares de suas cartas (e não nestes textos ligados ao reino e ao juízo), mostra o contrário: uma vez libertos do pecado pelo Messias, podemos viver uma vida nova, baseada na liberdade dada pelo Messias: uma vida em que manifestamos o fruto do Espírito Santo, através de uma vida santa (termo tradicional), ou um estilo de vida messiânico (termo mais recente).

(c) O Reino como soberania escatológico-apocalíptica de Deus: “E, então, virá o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver destruído todo principado, bem como toda potestade e poder” (1 Co 15.24); “exortamos, consolamos e admoestamos, para viverdes por modo digno de Deus, que vos chama para o seu reino e glória” (1 Ts 2.12).

Por escatológico eu dou a entender que o fim já começou – ou seja, o fim não é apenas um dia a vir no futuro. O fim é o nome que damos ao tempo em que vivemos – um tempo marcado pela tensão entre dois senhorios: (a) o senhorio dominador terreno que leva à morte – cristalizado em formas simbólicas e em instituições sociais que dividem e classificam a humanidade entre os que exercem poder e os que sofrem o exercício do poder como dominação[5]; (b) o senhorio emancipador de Deus que leva à vida – cristalizado em formas simbólicas e em práticas sociais (individuais e coletivas) que reúnem a humanidade dividida – na linguagem bíblica: amor ao próximo como a si mesmo, enquanto expressão do amor a Deus acima de todas as coisas.

Por apocalíptico dou a entender que a história humana é descrita a partir do esquema do tempo presente e do tempo futuro, do tempo atual e do que-há-de-vir. Só que é um esquema escatologicamente qualificado, não mais cronologicamente definido. O tempo futuro já está presente, ele está presente no tempo presente, é a luz que invade as trevas da era de pecado que configura o presente humano. Não é mais uma sucessão de épocas, como na apocalíptica judaica típica, mas de uma superposição de modos de viver: segundo a carne (a vida do tempo presente), segundo o Messias, ou segundo o Espírito (a vida do tempo futuro).

Aproveito para comentar sobre a versão agambeniana da temporalidade messiânica. Começo com a citação:

Mas não é nem mesmo um simples segmento retirado do tempo cronológico e que iria da ressurreição até o fim do tempo. É um tempo que pulsa dentro do tempo cronológico, que o trabalha e o transforma a partir de dentro. É, de um lado, o tempo que o tempo emprega para terminar; de outro, o tempo que nos resta, o tempo do qual precisamos para fazer o tempo terminar, para atingir a meta, para nos libertarmos da nossa representação ordinária do tempo. (Agamben, 2015)

O caráter escatológico-apocalíptico do reinado de Deus se concretiza em uma visão radicalmente diferenciada da temporalidade humana. Não se trata mais de uma visão dualista, por exemplo, (reino espiritual versus reino material; ou já versus ainda não; ou na linguagem já sacralizada de Agostinho, de uma dualidade entre cidade de Deus e cidade dos homens, e toda a repercussão disso na história da teologia cristã), nem de uma visão monista (ou tempo secular como temporalidade única, ou tempo espiritual como temporalidade única). As temporalidades em questão são as temporalidades expressas nos contrastantes estilos de vida não-messiânico e messiânico. O tempo presente, que é o tempo em que vivemos, é tempo que resta, ou seja, é tempo de tensão, de desafio, de vocação – é neste tempo não-messiânico que somos chamados e empoderados (pelo Espírito) a viver o tempo messiânico. O tempo messiânico não é cronológico, ou seja, não é um tempo que está no futuro e virá substituir o tempo presente. É uma temporalidade imanente à atual e (única) temporalidade cronológica, que a subverte internamente, que, em certo sentido, de fato a perverte, posto que contra todas as possibilidades, neste tempo cronológico é possível viver como o Messias viveu.

Do ponto de vista da concepção de Deus, o texto de Corinto reafirma a condição anômala da concepção paulina de Deus – o Messias Jesus é Deus, ele reina no presente como Deus mas, no futuro, “devolverá” o reino ao Pai (mas continuará reinando com Ele, cf. a metáfora, também usada por Paulo, de Jesus assentado à direita de Deus).

(d) O Reino como o espaço da vida messiânica no presente: “Ele nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do seu Filho amado” (Cl 1.13); “e Jesus, conhecido por Justo, os quais são os únicos da circuncisão que cooperam pessoalmente comigo pelo reino de Deus. Eles têm sido o meu lenitivo” (Cl 4.11).

A mesma noção do estilo de vida messiânico presente em textos já refletidos sobre o reino de Deus reaparece aqui, desvestida dos motivos escatológico-apocalípticos. Dois novos aspectos são ressaltados: (1) antes da fé-fidelidade no Messias, as pessoas vivem sob um soberano não-amoroso, injusto, dominador – o pecado e suas variadas expressões concretas nas relações humanas – agora, no Messias, as pessoas podem viver um novo estilo de vida, pois estão debaixo do amor de Deus que nos empodera para viver como o Messias viveu; (2) o reino de Deus é o espaço missionário de Paulo e das comunidades messiânicas, a tarefa paulina é fundar comunidades em lugares novos, porque o reino de Deus tem alcance cósmico. É isto que está na base da discussão sobre a relação Igreja-Reino na teologia latino-americana do final do século XX (não só, também está presente no hemisfério norte): a Igreja não é o fim da missão, mas o instrumento. A finalidade da missão é a universalização do reino de Deus, e não do reino eclesiástico. Em outras palavras, a universalização do amor do Messias mediante o amor dos seguidores do Messias – ou seja, Paulo fazendo justiça ao ensino de Jesus sobre a Lei.

  1. Entregando o reino ao Pai: 1Coríntios 15.20-28

À luz da descrição mais genérica das características do Reino de Deus na seção anterior, passo a refletir mais especificamente sobre a dimensão apocalíptica do Reino de Deus em 1 Coríntios 15. Começo com a tradução do texto em formato que já descreve a sua estrutura quiástica não-concêntrica. A exposição da teologia do texto segue uma lógica temática, não a lógica estrutural.

(a) 20Ora, o Messias foi, de fato, ressuscitado dentre os mortos, como primícias dos que dormem. 21Pois, visto que a morte chegou por meio de um ser humano, também a ressurreição dos mortos chegou por intermédio de um ser humano. 22Porque assim como no Adão todos morrem, também no Messias todos serão vivificados.

(b) 23Mas cada um em sua própria ordem: primeiro o Messias, depois os que são do Messias em sua parusia, 24então o fim:

(c) Quando tiver entregue o Reino a Deus o Pai, após ter destruído todo principado, autoridade e poder.

(c’) 25Pois ele deve reinar até que tenha colocado todos os inimigos debaixo de seus pés.

(b’) 26O último inimigo sendo destruído: a morte, 27pois sujeitou todas as coisas debaixo de seus pés.

(a’) Ora, quando diz “todas as coisas” lhe estão sujeitas, é claro que exclui aquele que a ele as sujeitou. 28Quando, porém, todas as coisas lhe forem sujeitas, então, o próprio Filho se sujeitará àquele que lhe sujeitara todas as coisas, para que Deus seja tudo em todos.

A Morte

A morte é descrita no verso 26a como “o último inimigo” de Deus e do Messias. Nos versos 24b-25 os inimigos são identificados com os poderes que dominam sobre a criação divina neste tempo presente, os quais ainda não estão sob a sujeição divina – não concretizam o reino de Deus na terra. No verso 21, afirma-se que a morte chegou ao mundo por meio de um homem (Adão) – note o paralelo com Rm 5.12ss em que Paulo afirma que a morte chegou ao mundo em decorrência do pecado – que chegou ao mundo por meio de um homem (Adão). Ao final do capítulo Paulo relaciona a morte ao pecado (que é o seu aguilhão), após ter identificado a mortalidade com a corruptibilidade do corpo do pecado. Em outras palavras, para Paulo não se trata de discutir a morte como um evento natural, como algo que faz parte da vida (como entre os gregos, por exemplo). A morte – diríamos ‘espiritual’ – veio a fazer parte da vida humana por causa do próprio ser humano. Parece que este era o ponto de vista do grupo em Corinto que negava a ressurreição dos mortos – pois se a morte é um fim natural da vida, não há porque se esperar uma vida além da morte.

Embora afirme a ressurreição, Paulo não se preocupa em discutir sobre como será a vida após a vitória sobre a morte, apenas a descreve como uma vida incorruptível, imortal, em um corpo espiritual. Podemos deduzir que, tendo o Messias destruído todos os inimigos de Deus, na vida após a ressurreição não haverá pecado – a fonte de todos os problemas humanos – e, consequentemente, não haverá carne, lei, nem poderes dominadores. O mais importante para Paulo é viver esta vida de acordo com a fidelidade a Deus Pai, no Messias, e não especular sobre como viver após a morte.

A morte é inimigo, ou seja, faz parte do conjunto de poderes que dominam sobre a vida humana e a tornam injusta, sofrida, insuportável. Destaco o tempo verbal em que a destruição da morte é colocada: no presente indicativo. Do ponto de vista da qualidade da ação, isto pode significar que a morte já está sendo vencida, ou, em outras palavras, que a vitória sobre a morte já aconteceu, mas ainda não está consumada. Do ponto de vista da temporalidade, a vitória final sobre a morte ocorrerá no fim (v. 24). O advérbio grego usado no verso, pode indicar que o fim virá depois da parusia, ou que o fim será consequência da parusia, sem interregno de tempo entre ambos – esta posição parece ser a mais coerente com os demais escritos paulinos sobre a parusia. A vitória sobre a morte, iniciada com a ressurreição do Messias, será consumada com a parusia do Messias. O paradoxo implícito nestas afirmações paulinas é que a morte do Messias – que não conheceu pecado (2Co 5.21) – foi necessária para derrotar a morte como consequência do pecado. Só é primícias dos que dormem a ressurreição do Messias, do executado na cruz.

Do ponto de vista da espiritualidade cristã, pelos menos dois pontos são feitos neste capítulo de 1 Coríntios: (a) a vida cristã é vivida sob o signo da esperança, de modo que não podemos considerar os limites do tempo atual como inquebráveis. Podemos transcender as limitações da vida humana aqui e agora, sem abolir a nossa finitude e mortalidade (cf. Rm 8.2, que afirma estarmos, no Espírito, livres da lei do pecado e da morte). Consequentemente, não precisamos temer a morte, pois ela já está vencida, como disse Paulo aos Filipenses: “Porquanto, para mim, o viver é o Messias, e o morrer é lucro” (Fp 1.21); e (b) já que morreremos, aproveitemos o tempo de nossa vida para viver de modo fiel ao Messias e a seu Deus e Pai: “Portanto, meus amados irmãos, sede firmes e constantes, sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que o vosso trabalho não é vão no Senhor” (1 Co 15.58).

A Ressurreição

O capítulo 15 inicia com a afirmação de Paulo que pregou o Evangelho conforme a tradição que recebera: “Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que o Messias morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras” (15.3-4). “Segundo as Escrituras”, ou seja, de acordo com, ou em conformidade com o plano de Deus para a sua criação. Depois, Paulo passa a argumentar com os coríntios sobre o absurdo da negação da ressurreição dos mortos: “Ora, se é corrente pregar-se que o Messias ressuscitou dentre os mortos, como, pois, afirmam alguns dentre vós que não há ressurreição de mortos? E, se não há ressurreição de mortos, então, o Messias não ressuscitou. E, se o Messias não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã, a vossa fé; e somos tidos por falsas testemunhas de Deus, porque temos asseverado contra Deus que ele ressuscitou ao Messias, ao qual ele não ressuscitou, se é certo que os mortos não ressuscitam. Porque, se os mortos não ressuscitam, também o Messias não ressuscitou. E, se o Messias não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados” (15.12-17).

De fato, porém … o Messias foi ressuscitado dentre os mortos pelo Pai. Assim se inicia a perícope que estamos analisando. A ressurreição do Messias possibilita a vivificação dos pecadores, ou seja, a ressurreição dos mortos, que ressuscitarão com Ele (cf. Cl 3.1-4). A ressurreição do executado na Cruz é o início da vitória sobre a morte (logo, sobre todos os poderes que escravizam o ser humano), temática que é mais amplamente desenvolvida em Romanos: (a) mediante a ressurreição o Messias Jesus é entronizado como Filho de Deus (1.4); (b) a vindicação do Messias executado é a vindicação dos pecadores que a Ele se tornam fieis (4.24-25) – que usa um termo raro da raiz dikai, que pode ser traduzido tanto por justificação quanto por vindicação; (c) mediante a ressurreição seremos salvos pelo Messias da ira de Deus e da morte (5.8-9); (d) ressurretos com o Messias, podemos viver uma vida nova neste tempo presente (6.1ss); (e) como o ressurreto é o executado na Cruz, estamos livres dos poderes que dominam o ser humano, dentre eles, da própria Lei (7.1ss); (f) o ressurreto intercede por nós diante de Deus, em seu lugar à direita do trono divino; e (g) a confissão da ressurreição é o meio para recepção da salvação (10.9-10).

Implícita na argumentação é que a ressurreição deveria ser de um homem – o próprio Deus, enquanto Deus, não pode morrer e, mesmo que pudesse, sua morte não seria representativa da humanidade. Foi necessário que o Messias, humano, morresse a morte representativa para a salvação da humanidade – cf. a bela descrição encontrada no hino de Fp 2.5-11. O homem-Deus ressurreto inaugurou o tempo escatológico-apocalíptico do Fim – o tempo da vitória do reinado de Deus. O tempo presente em que vivemos já não é mais o mesmo, é um tempo inundado pela temporalidade messiânica da vitória sobre os poderes que dominam o ser humano. Podemos viver uma nova vida pois somos habitados pela energia daquele que ressuscitou o Messias dentre os mortos. Na ressurreição do Messias, a vida encontra o seu lugar definitivo. Nele, podemos viver uma vida plena no tempo presente, na tensão escatológico-apocalíptica da liberdade em confronto com os poderes dominadores da vida humana.

A Temporalidade Messiânica[6]

A afirmação sobre a vinda da ressurreição dos mortos, no Messias, leva Paulo a apresentar sua visão da ordem da temporalidade escatológica messiânica: o Messias, os do Messias, o fim. Temporalidade iniciada na vida, morte e ressurreição do Messias como primícias dos que dormem. O fim é apresentado como término do reino do Messias: “Quando tiver entregue o Reino a Deus o Pai, após ter destruído todo principado, autoridade e poder. Pois ele deve reinar até que tenha colocado todos os inimigos debaixo de seus pés”. Diferentemente das formas populares de compreensão dos tempos do fim nas Igrejas Cristãs, o fim é o fim da era do Messias – o fim de uma história cujo sentido é dado pelo Messias: o centro, o eixo da história desta Criação. Diferentemente dos modos dualistas de compreensão da história (desde Agostinho, pelo menos, dominantes nas Igrejas), a visão paulina da história é monista. Há uma só história, cujo sentido é dado pelo evento messiânico Jesus. Não se trata de duas histórias em oposição, mas de uma única história na tensão entre dois senhores: o Messias, ou os poderes.

Na pesquisa acadêmica mais recente, um dos focos de discussão é o caráter da temporalidade em Paulo: escatológico ou apocalíptico. Na maior parte dos casos, é um falso problema, pois cada autor define os termos conforme a sua própria perspectiva. Pode-se falar, como eu prefiro fazer, em tempo escatológico-apocalíptico. Cabe retomar e ampliar o que já apresentei na seção anterior.

Por escatológico eu dou a entender que o fim já começou – ou seja, o fim não é apenas um dia a vir no futuro. O fim é o nome que damos ao tempo em que vivemos – um tempo marcado pela tensão entre dois senhorios: (a) o senhorio dominador terreno que leva à morte – cristalizado em formas simbólicas e em instituições sociais que dividem e classificam a humanidade entre os que exercem poder e os que sofrem o exercício do poder como dominação; (b) o senhorio emancipador de Deus que leva à vida – cristalizado em formas simbólicas e em práticas sociais (individuais e coletivas) que reúnem a humanidade dividida – na linguagem bíblica: amor ao próximo como a si mesmo, enquanto expressão do amor a Deus acima de todas as coisas. Nos tempos de Cullmann usava-se a metáfora do já versus ainda-não. Hoje em dia é preferível falar em outros termos, abandonar essa metáfora, porque o que se consuma não é o reino do Messias inaugurado, mas o retorno do reinado a Deus, exclusivamente: isso não está inaugurado! Ademais, a metáfora baseada no Dia D (Segunda Guerra Mundial) é exclusivamente cronológica, quando o tempo escatológico é predominantemente qualitativo.

Por apocalíptico dou a entender que a história humana é entendida a partir do esquema do tempo presente e do tempo futuro, do tempo atual e do que-há-de-vir. Só que é um esquema escatologicamente qualificado, não mais cronologicamente definido. O tempo futuro já começou, ele está presente no tempo presente, é a luz que invade as trevas da era de pecado que configura o presente humano. Não é mais uma sucessão de épocas, como na apocalíptica judaica típica, mas de uma superposição de modos de viver: segundo a carne (a vida do tempo presente), segundo o Messias, ou segundo o Espírito (a vida do tempo futuro). Beker formulou uma nova metáfora para a temporalidade escatológico-apocalíptica paulina: “com o evento Cristo, a história tornou-se uma elipse com dois focos: o evento-Cristo e a Parousia, ou o dia da vitória final de Deus” (Beker, 1980, p. 160). Focos que se complementam e estabelecem a temporalidade humana como uma temporalidade messiânica – tensa e densa; completa e vazia simultaneamente.

O Reino de Deus

Em nossa perícope encontramos dois conjuntos de reinos: (a) um conjunto de reinos em oposição mútua – o reino divino e os poderes dominadores do humano; e (b) um par de reinos em complementaridade escatológico-apocalíptica – o reino de Deus e o reino do Messias que, em última instância, são o mesmo reino.

Aqui, a ênfase recai sobre dois aspectos: (a) o escatológico-apocalítico – o Messias reina enquanto não voltar à terra em sua parusia, em algum momento cronológico desconhecido por nós mas, possivelmente, pensado por Paulo como não muito distante de seu próprio tempo[7]; e (b) esse Reino é um reino de oposição aos poderes que dominam e escravizam o ser humano, sendo que o último poder a ser vencido é a morte – que sintetiza todos os demais poderes escravizadores. Como Messias, representante de Deus entre os seres humanos e representante dos humanos diante de Deus, ele reina como embaixador, como delegado, e deverá entregar ao Pai todos os poderes no fim dos tempos. Que o Messias recebeu do Pai o poder de reinar é tema similar ao que encontramos em Mt 28.18 “Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: toda a autoridade (exousia) me foi dada no céu e na terra”. Neste sentido, a noção paulina da soberania de Deus, do poder divino, estabelece um contraste radical com as formas práticas e as compreensões teóricas do poder enquanto domínio e dominação sobre outros – seja essa dominação política, pessoal, religiosa ou de qualquer outro tipo.

Conclusão

Se os judeus pedem sinais, os gregos buscam sabedoria e os romanos exigem submissão, o Reino de Deus mostra a verdadeira natureza dos sinais, da sabedoria e da autoridade: o poder de morrer pelo escravo, a sabedoria de dar a vida pelo escravo, a autoridade de entregar a vida pelo escravo. Reino de Deus é reino de vida, não de morte – e a morte do Messias executado e ressurreto é o ponto crucial da história humana em que o Reino se torna presente entre nós. O Reinado do Messias significa, na prática dos cristãos, o reinado da subjetividade messiânica, do estilo de vida ou espiritualidade messiânica: amar o próximo como a si mesmo, a expressão concreta de nosso amor a Deus Pai, a expressão concreta da mística permanente do Messias vivendo em mim (cf. Gl 2.20). Mais, significa a transformação da história individual na história universal. No tempo ‘atual’ o futuro já pode ser vivido, não importa se as circunstâncias globais mostrem a ainda dominação da escravidão. No Messias é possível viver, já, em liberdade!

Assim, a integralidade da missão não pode simplesmente ser vista como a ampliação dos tipos de ação missionária do povo de Deus. A integralidade da missão não se mede primariamente ‘pelo que se faz’, mas ‘como se faz’ – ou seja, a integralidade da missão é uma questão de fidelidade integral ao Reino de Deus, e não se mede apenas pelo que a Igreja faz, mas, sim, pelo modo como as seguidoras e os seguidores do Messias vivem em cada momento de suas vidas terrenas.

Referências Bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Cristianismo como religião: a vocação messiânica. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-arquivadas/28959-cristianismo-como-religiao-a-vocacao-messianica-artigo-de-giorgio-agamben>. Acesso em 22.02.2015.

BEKER, Johann. C. Paul the Apostle: The Triumph of God in Life and Thought. Philadelphia: Fortress, 1980.

FITZMYER, Joseph. First Corinthians. New Haven: Yale University Press, 2008. (Série Anchor-Yale Bible).

MAY, Alistair Scott. ‘The Body for the Lord’. Sex and Identity in 1 Corinthians 5-7. Londres: T & T Clark, 2004.

[1] Evito o acúmulo de citações e referências bibliográficas. Meu débito com a pesquisa teológica e filosófica recente sobre Paulo é bastante amplo e não conseguiria fazer justiça ao mesmo com o acréscimo de mais citações.

[2] O uso da noção de poder não deixa de ser irônico, pois em todo o capítulo Paulo está apresentando o seu apostolado e o ministério cristão como expressão de fraqueza! Em Mc 9.1 a palavra poder é também associada ao reino de Deus.

[3] Uma interpretação alternativa, que tem alguma força, é considerar o poder como o poder demonstrado por Paulo em efetuar seu ministério sob sofrimento e perseguição, em imitação do Messias, cp. Cl 1,24ss. Para uma breve nota bibliográfica sobre essas diferentes interpretações, ver: Fitzmyer, 2008, p. 225s.

[4] Os dois termos gregos que se referem à relação sexual entre homens são de difícil tradução, tendo em vista as conotações inadequadas que termos atuais teriam em relação aos seus significados no passado. O uso de efeminado é um exemplo disso. A palavra grega normalmente se refere a um homem que é penetrado na relação sexual por outro homem (a quem se refere a palavra seguinte neste verso, traduzida por sodomita). Devemos entender essas palavras sem conotação de identidade de gênero, posto que a prática que Paulo condena aqui era uma prática socialmente aceita no mundo greco-romano que expressava a hierarquia social e não a identidade pessoal. Obviamente o tema é complexo, e esta breve menção está longe de fazer justiça ao mesmo. Para uma discussão especificamente ligada a 1 Coríntios, ver: May, 2004.

[5] Formas que, na terminologia paulina, recebem o nome de Lei, Pecado, Carne, Poderes.

[6] Inevitavelmente, alguma superposição e repetição em relação ao que já foi apresentado na seção anterior serão vistas aqui.

[7] É possível aqui uma alusão a Dn 2.44: “Mas, nos dias destes reis, o Deus do céu suscitará um reino que não será jamais destruído; este reino não passará a outro povo; esmiuçará e consumirá todos estes reinos, mas ele mesmo subsistirá para sempre”

 

Sobre o autor

Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero é Professor da Faculdade Teológica Sul Americana. Doutor em Bíblia pela Escola Superior em Teologia (EST), São Leopoldo, RS.

Contato com o autor: jzabatiero@ftsa.edu.br