26 nov A mensagem da cruz para a Igreja contemporânea e seus possíveis significados a partir dos Evangelhos | Por Mariana E. Schietti
Introdução
Se existe uma informação que todos os cristãos têm, desde o início de sua caminhada na fé, é a de que o Jesus no qual cremos morreu numa cruz. Além disso, certamente já ouviram ou já leram nas escrituras que, porque cremos nele, devemos tomar a nossa cruz e segui-lo. E pode-se dizer que a mensagem da cruz é central nos evangelhos. Isto porque, é uma das poucas exposições em que Jesus é incisivo com os adeptos de sua mensagem, tomar a cruz antes de segui-lo é uma condição para todos (Mt 16.24, 10.38; Mc 8.34; Lc 9.23, 14.27), as particularidades com que Jesus costuma tratar cada grupo, em cada milagre e em cada ensinamento, não se aplicam aqui. Tomar a cruz é necessário para quem quer que seja, que deseje segui-lo. Portanto, permanece como uma tarefa de toda a Igreja ao longo da história.
A problemática reside no fato de que poucos fiéis conseguem definir em termos práticos o que significa tomar a sua cruz e segui-lo. Perguntas como “o que isso tem a ver exatamente com meu dia a dia? Com minha casa, meu trabalho, meus estudos, minhas redes sociais etc.?”, não conseguem ser claramente respondidas. A falta de resposta para uma pergunta aparentemente tão simples para os seguidores do crucificado demonstra a emergência de revisão do tema nas comunidades cristãs contemporâneas. Principalmente porque, não é possível falar em Jesus sem falar na cruz.
Resgatar e ressignificar a mensagem da cruz a partir dos evangelhos, a fim de propor um norte às comunidades cristãs contemporâneas, é o que se pretende neste ensaio. Não de forma exaustiva, pois exigiria muitas páginas e, mesmo assim, sempre haveria algo mais a ser pensado sobre a temática da cruz. Tampouco se pretende propor que este é o significado único da cruz. Certo que não é. Mas, esta é uma tentativa de ultrapassar a questão conceitual clássica, de forma que os significados se tornem práticos e impliquem em um estilo de vida que tem a mensagem bíblica da cruz como paradigma. O objetivo principal deste ensaio é que, ao final, o leitor possa ter aberto seus horizontes sobre o valor e a profundidade desta mensagem para dias como os nossos e possa, da mesma forma, torná-la uma prática de vida.
A cruz que tirou o pecado do mundo
Antes de apresentamos uma hermenêutica evangélica sobre cruz, digo baseada nos Evangelhos, cabe pontuarmos, e superarmos, algumas questões sobre as teologias clássicas da cruz. Richard Rohr em sua obra O Cristo Universal traz um capítulo específico (cap. 12) sobre elas e suas implicações na vida dos cristãos atualmente. No sentido das implicações práticas dessas teologias, Rohr ressalta uma aparente postura de gratidão dos fiéis a Jesus, mas de pouco empenho em imitá-lo honestamente – e neste sentido, penso ser pela falta de uma compreensão evangélica sobre a cruz e seu reflexo na vida cotidiana – além da ideia, inconsciente talvez, de um Deus frio e distante que, por amor, pune seu filho no lugar dos outros. Um Deus que precisa de sangue para aplacar sua ira. Concordo com Rohr de que a teoria da expiação dos pecados, a mais clássica possivelmente, pode ter nos desviado a atenção dos demais efeitos que a mensagem da cruz deve causar na vida cristã. A cruz como simples expiação de pecados se torna passiva, enquanto a cruz como modelo de vida precisa ser constantemente ativa. Por isso, é necessário redescobrirmos este tema bíblico fundamental à fé cristã.
É comum ouvirmos falar sobre a cruz que tirou o pecado do mundo. A cruz que condenou o inocente. A cruz reconciliou o mundo com Deus. A cruz que trouxe salvação. E, consequentemente, é comum vermos essa mesma cruz sendo o símbolo identificador dos cristãos. Ela está presente em diversos espaços, está presente na arte, nos objetos de decoração, nos assessórios da indústria da moda e assim por diante, basta olhar ao nosso redor e logo encontraremos alguma. Seja vazia, seja com Cristo ainda nela, não importa. Ela está ali. Entretanto, não foi a cruz que tirou o pecado do mundo, foi quem morreu nela que subverteu a consciência do pecado. Não foi a cruz que condenou o inocente, foram pessoas que utilizam a cruz como forma de punição do inocente. Não foi a cruz que trouxe salvação, foi o que aconteceu antes dela e depois dela por meio da encarnação do próprio Deus. A cruz por si só, sem o que ela representa, não é nada mais além de um objeto de tortura e punição muito utilizado pelo Império Romano nos dias de Jesus.
Ainda que a teologia Paulina permita uma visão da cruz a partir de uma cristologia alta, o que vemos muitas vezes é um abuso dessa teologia, que fez seu significado se tornar simplista e romântico. Carregada de mistérios que não permitem questionamentos e, portanto, não abrem caminho para explicações, a cruz acaba não surtindo efeito algum na vida cotidiana. Neste sentido, a morte do Cristo teria tirado o pecado do mundo como uma mágica, apenas porque Deus precisava do sangue inocente para conceder perdão, como reflete Rohr (2019) denominando o enredo de “mito da violência redentora”. A teoria, portanto, propõe que a cruz tem muito mais a ver com Deus do que conosco. Mas não é isso que Jesus alerta aos seus discípulos durante seu ministério terreno. Ao contrário, a cruz, a partir dos relatos sobre Jesus nos evangelhos está muito mais ligada à nossa humanidade e às nossas necessidades do que a Deus e suas necessidades divinas.
Portanto, passamos à análise dos possíveis significados da cruz nos evangelhos, utilizando ainda o alerta de Rohr (2019, p. 140) de que “é hora do cristianismo redescobrir o tema bíblico mais profundo da justiça restaurativa que se concentra na reabilitação e reconciliação e não na punição”.
A cruz nos evangelhos: uma denúncia aos equívocos humanos
Nos evangelhos sinóticos vemos a marca expressiva da cruz antes mesmo do evento da crucificação de Jesus de Nazaré. Independente da escrita tardia dos evangelistas, Jesus é narrado durante seu ministério indicando tal caminho. Mateus 16.24 relata: “Então, disse Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me”. Marcos 8.34, por sua vez, escreve: “Então, convocando a multidão e juntamente os seus discípulos, disse-lhes: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me”. Por fim, em Lucas 9.23 temos: “Dizia a todos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me”. Está claro que só há um caminho para os que desejam seguir a Jesus, e este caminho é o da cruz. Além disso, segundo o evangelista Mateus, Jesus foi mais a fundo com a questão da cruz dizendo: “Quem não toma a própria cruz e não me segue, não é digno de mim”.
Os versículos são categóricos, não abrem espaço para negociação. A cruz foi e é elemento indispensável na vida dos que desejam caminhar com Cristo. E é preciso lembrar que os discípulos estão recebendo essas instruções no contexto da Palestina do primeiro século, dominada pelo Império Romano, que utiliza a crucificação como punição para os piores marginais, principalmente para “aqueles que se opunham ao sistema de dominação vigente” (Proença, 2001, p. 38). A cruz é resultado de uma sentença condenatória que pretende torturar o réu diante de toda a sociedade, demonstrando sua vergonha, sua humilhação, seu fracasso enquanto ser humano e o merecimento da morte na sua forma mais sofrida, além de querer demonstrar quem são aqueles que mandam. É o espetáculo de horror que o condenado deve proporcionar ao público que o assiste desde o início, enquanto carrega seu objeto de tortura, até o fim, quando o torturado já não pode mais suportar sua existência e se entrega à morte. Os telespectadores deviam sentir medo dos dominadores e respeitá-los para não acabar naquele mesmo lugar. Isto era, até então, o que os discípulos de Jesus conheciam sobre a cruz.
A grande questão é: Por quê? Por que era preciso carregar essa cruz, melhor dizendo, carregar essa vergonha, essa dor, essa humilhação e essa condenação? Por que ainda hoje somos convocados a isso, caso nosso desejo seja ser um discípulo fiel ao Cristo?
Os próprios evangelistas demonstram a resposta. No primeiro anúncio de Jesus sobre seu sofrimento ele afirma “que era necessário ir a Jerusalém, sofrer muito por causa dos anciãos, chefes dos sacerdotes e doutores da Lei, ser morto e ressuscitar ao terceiro dia” (Mt 16.21). Jesus não afirma que é necessário sofrer para que seu Pai perdoe o mundo, tampouco afirma que precisa sofrer porque Deus está cobrando uma dívida. Mas sim que “O filho do homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, chefes dos sacerdotes e doutores da Lei, ser morto e ressuscitar ao terceiro dia” (Lc 9.22). Aqui a sua crucificação é um problema com a própria religião de seu tempo e o estilo de vida que Jesus levaria. É um problema com aqueles que determinam o certo e o errado, que determinam quem é o aceito e quem é o rejeitado por Deus. Por esses, os conhecedores da Lei, os seguidores assíduos da religião, os autointitulados puros, é que Jesus irá sofrer. Rohr afirma “a visão do Cristianismo sobre Deus era uma ruptura radical com a maioria das religiões antigas”, ouso dizer que a mais impactada com essa ruptura era o judaísmo, pois era neste meio que Jesus estava inserido; ele era um judeu! Mas esse sofrimento também irá demonstrar, após o terceiro dia, quão incapaz é esse sistema de julgar e condenar uma vida em nome de Deus, como faziam e como ainda fazemos. Vivemos, até hoje, julgando o mundo em nome de Deus.
Antes de nos aprofundarmos na cruz em si, vale ressaltar que pós essas declarações, Jesus apresentou dois paradoxos interessantes: 1) Aquele que perdeu a vida por causa dele, na verdade a encontrou (Mt 16.25; Mc 8.35; Lc 9.24); 2) Em contrapartida, aqueles que acham que ganharam o mundo na verdade se destruíram (Mt 16.26; Mc 8.36; Lc 9.25). Estes textos demonstram que o caminho da cruz é, a bem da verdade, uma consequência da escolha de seguir a Jesus em sua ética de vida, isso porque segui-lo exige uma postura semelhante que, na maioria das vezes, é subversiva ao que a sociedade espera e requer de cada um de nós. Aqui o conceito de vida e sucesso são colocados em xeque. Segundo Storniolo (2009, p. 98) trata-se de uma questão de escolha “entre o projeto e a glória de Jesus e os projetos e a glória do mundo”, de certo que escolher a glória de Jesus será escândalo para o mundo. Por isso, ganhar o mundo e ganhar a vida da forma planejada pelo próprio Deus é – arrisco uma afirmação categórica – impossível.
Se fizermos um breve apanhado dos relatos dos evangelistas sobre Jesus, encontramos uma série de comportamentos problemáticos para seu tempo como, por exemplo: comer e beber ao lado de pecadores, ter proximidade com mulheres como Maria Madalena, Marta e Maria, mais grave ainda, a samaritana, a quem se revelou durante uma conversa particular no poço. Jesus não para por aí, coloca em meio aos seus discípulos um cobrador de impostos e pescadores, profissões consideradas sujas para os judeus escrupulosos de seu tempo. Quantas são as cenas em que Jesus é relatado praticando atos proibidos aos sábados, recolhendo espigas de milho durante seu caminho, entrando à casa de um fariseu e iniciando sua refeição sem lavar as mãos; este último poderia ser a maior das afrontas para um religioso que passa sua vida toda preocupado com a purificação. O comportamento problemático de Jesus, entretanto, é um grito de vida. É um salto em defesa daqueles que são incapazes de cumprir as minucias da Lei e, por isso, são tidos como pecadores, rejeitados e amaldiçoados por Deus, que tendem a ser condenados por afrontarem o sistema com sua sujeira. Este caminho de confronto, de rejeição por parte dos “aceitos” da sociedade, de humilhação por parte dos mestres, conhecedores do bem e do mal, é o caminho sobre o qual Jesus afirma: aquele que não está preparado para combatê-lo, não é digno de mim!
Neste sentido e falando mais propriamente sobre o evento final da morte de Jesus, Zabatiero (2019, p. 126-137) afirma que o episódio da cruz é aquele que interrompe a vida na sua concepção humana. A cruz é, portanto, a interrupção da calculabilidade humana aplicada à vida. Ela é a expressão máxima do equívoco da sabedoria e da justiça humanas colocadas em prática. O próprio Deus, a partir dos cálculos dos dominadores foi considerado culpado, merecedor de tortura e morte.
Quando o próprio Deus é condenado a morrer numa cruz, podemos afirmar que Deus, em Jesus, se recusou a seguir os padrões de vida que lhes foram impostos, padrões que soterravam a dignidade humana de uns em prol do sucesso e do bem-estar de outros. Rohr (2019, p. 46) sobre a cruz entende que: “Deus não é violento – nós somos. Não é Deus quem deseja sofrimento humano – nós desejamos. Deus não precisa e nem quer sofrimento – nem em Jesus, nem em nós”.
Jesus preferiu se entregar ao sofrimento e à morte, mesmo sem merecê-la, para denunciar nossas maldades, para pôr fim a todo cálculo fundamentado nas teorias humanas. Jesus, ao sofrer inocentemente naquela cruz, denuncia o quanto os valores (legais, morais e religiosos) estavam invertidos. E sua ressurreição é a maior derrota da brutalidade que se encontra nesses valores. A ressurreição Jesus abre espaço para aqueles que desejam viver no bem. Seus ensinamentos, que geram vida plena e que expressam a vontade do pai, libertam o povo excluído, maltratado e marginalizado do peso da calculabilidade humana que lhes era imposto. Jesus na cruz é a maior representação de todos os rostos equivocadamente condenados à miséria humana, seja em qual esfera for.
A cruz é consequência de um modelo de vida a ser seguido, no qual a dignidade de todos é respeitada e os padrões mundanos são rejeitados. Sem dúvidas o mistério da cruz existe e é uma das maiores questões diante da leitura dos evangelhos: “Como foram capazes de condenar o próprio Deus?”, poderia ser uma pergunta inicial para esse mistério. Na cruz encontramos o próprio Deus, que a todos criou e amou, abandonado e maltratado. Compreender essa ambivalência não é tarefa fácil. Mas de fato ela nos leva a atravessar da justiça humana para justiça divina, onde se inicia uma nova vida.
Ressignificando a mensagem da cruz
Ao passar da justiça humana para divina, Jesus demonstra que a justiça divina está além da humana. Enquanto a humana põe fim à vida por meio de padrões equivocados, Jesus propõe um Reino onde se viva em liberdade, onde o fardo é leve e o jugo é suave (Mt. 11.28-30). Portanto, carregar a cruz é carregar uma realidade, um comportamento, uma luta, uma causa, uma teologia, um amor. A cruz, segundo Boff (2003), se carrega mais do que com os ombros, e no coração. É uma inquietação diária que não se rende aos padrões políticos, religiosos, culturais, que promovem exclusão, divisão, tristeza e privilégios. Nisso consiste o verdadeiro papel das comunidades cristãs: se unirem para diariamente, em todas as suas ações e reações, ressaltarem o amor, a aceitação, a plenitude de vida, que encontramos em Jesus.
A mensagem da cruz convoca a Igreja a ter um olhar diferente para o mundo. Um olhar semelhante ao de Jesus, que não espera aprovação e status social, mas luta para promover a vida, onde as estruturas colocam morte. Que rejeita o hábito de calcular a vida com base em elementos tão supérfluos, que são exteriores e ignoram o que é interior. A decisão pela cruz exige amor e entendimento. Jesus certamente não é um sádico que deseja ver pessoas optando pela cruz pelo mero prazer de vê-las sofrer. Ao contrário, o desejo de Jesus é que no caminho da cruz a pessoa se depare com a libertação do sofrimento, da opressão e da escravidão. O fim da dor e o início de uma vida digna e plena. Afinal, Jesus ressuscitou e provou que esses padrões são incapazes de nos destruir. Há vida mesmo após a condenação humana.
Essa deve ser a boa nova que se encontra nas comunidades cristãs, pois Deus não faz parte das injustiças e da impiedade deste sistema. Ele se coloca como condenado para sofrer junto com os que sofrem. Assim, qualquer ato, palavra e comportamento que expresse violência, física ou moral, não vem da parte de Deus, ainda que os violentos ousem usa seu nome, Deus não está ali. Boff (2003, p. 36) explica que o assassinato de Jesus é fruto de um duplo processo: o religioso, que o acusação de blasfêmia e falso profetismo, e o político que o acusou de ser subversivo e guerrilheiro. Segundo essas duas classes Jesus deveria ser condenado. Quanto a primeira, afirmavam que sua condenação era em nome de Deus. “Mas, “Se Jesus quisesse ser fiel ao Pai, a si mesmo e às pessoas em quem suscitara as esperanças radicais do reino, deveria contar com a inevitabilidade da perseguição e do fim violento” (Boff, 2003, p. 37).
A mensagem da cruz não é um convite egocêntrico ao sofrimento e à passividade, como dizem: “essa é minha cruz, fazer o que?”. Diferente disso, é um chamado à luta comunitária pela vida plena de todos os seres humanos. Fidelidade a Deus é fidelidade à integralidade humana e às particularidades pertinentes a ela. Trata-se de fidelidade aos valores éticos e morais pregados e vividos por Jesus.
Enquanto igreja precisamos compreender que, na prática, carregar a cruz é saber dizer não para comportamentos comuns como, por exemplo: explorar a mão de obra barata com salários desumanos; é dizer não ao discurso religioso que explora pessoas que mal conseguem arcar com necessidades básicas, propondo um Deus que barganha bênçãos; é dizer não à busca incansável pela beleza que agride o corpo; é dizer não para uma rotina desumana de trabalho que te faz perder a intimidade do seio familiar. Por fim, é não ter medo de arcar com as consequências dos muitos nãos que são necessários para viver a plenitude da vida. Toda e qualquer rotina de vida, filosofia de vida, palavra e ação, que vão contra os valores do Reino, negam a cruz.
Em tempos como o nosso, a comunidade cristã que estimula um estilo de vida entregue aos padrões contemporâneos, onde sucesso financeiro, status, beleza e aprovação social medem a benção de Deus, precisa urgentemente resgatar e relembrar a mensagem da cruz. Pois esses são padrões que estão destruindo seres humanos e condenando, dia após dia, milhares que não se encaixam. São padrões que destroem famílias, que afastam membros de suas igrejas, que levam à depressão, ao suicídio, ao esgotamento. O ensino radical de Jesus sobre o amor demanda a cessão de toda forma de exclusão, condenação e ódio, onde ninguém deve ser julgado e condenado pela maneira que se veste, pelo que come, por sua cor, raça, credo, orientação sexual ou pelas músicas que ouve, pela profissão que têm ou que resolveu deixar de ter.
Um belo exemplo trazido por Pagola (2014, p. 331-334) sobre o impacto das rupturas propostas pela cruz, está em Simão, o “Cananeu”, que possuía muito zelo no cumprimento da Torá. E que para poder seguir a Jesus precisou abrir mão de seus excessos com a Lei e aceitar Levi em seu grupo, que era um arrecadador de impostos, portanto, um impuro. Também teve de aceitar se associar a publicanos, prostitutas, doentes, samaritanos e muitos outros que a Torá, como interpretada naquele tempo, exigiria distância.
Conclusão
Ao final deste ensaio já é possível desconstruir algumas falsas ideias sobre a cruz, afirmando o que ela não é, a partir dos evangelhos: (1) apenas um símbolo que se carrega como identificação de um grupo; (2) um fardo pesado que se carrega por obrigação e medo; (3) um pedido de autoflagelação e auto vitimização, em que o sujeito se submete às situações adversas da vida pensando que essa é a cruz que Deus lhe entregou; (4) uma simples lembrança diária de que nossos pecados estão perdoados pelo evento que se deu no Calvário; tampouco, com isso, (5) um passe livre para autodestruição na vivência dos prazeres intermináveis que se encontram à disposição dos humanos. A exigência de Jesus, segundo os evangelistas, de que devemos carregar nossa cruz diária para sermos dignos dele, não está relacionada a nenhuma motivação que tenha fundamentos e propósitos egoístas, egocêntricos, orgulhosos, interesseiros e destrutivos.
A cruz é a revelação do amor de Deus, não é o fim de tudo, não é o alvo último, mas é meio indispensável para o início de uma vida sob o reinado de Deus. O próprio Deus se colocou em meio aos condenados e superou a condenação ressuscitando após o terceiro dia para dizer que a decisão última sobre a vida é Dele e que Nele nenhuma condenação humana pesa sobre nós.
Por fim, a cruz nos liberta dos fardos pesados que a sociedade nos impõe. E o desafio da igreja é ter a coragem e a ousadia de pregar tal mensagem. No despautério da cruz as exigências, os padrões e a Lei, caem por terra. Aquele que deseja carregar a cruz e seguir a Jesus não se corrompe pelas ofertas de poder, sucesso e demais prazeres da vida. No carregar da cruz as escolhas mais simples são feitas: melhor a amizade do que o lucro, a família do que o dinheiro que se ajunta com horas intermináveis de trabalho, a ajuda ao próximo do que o acúmulo infundado, a convivência com os considerados impuros do que a repetição de ritos religiosos de purificação sem sentido. Na cruz, os seguidores de Cristo são desafiados a suportar qualquer acusação por terem escolhido a vida leve e o jugo suave, por terem escolhido a convivência amorosa e respeitosa com o diferente, por terem escolhido se aproximar e se tornar íntimos dos mais improváveis como fez Jesus com seus companheiros de ministério.
Referências bibliográficas
BOFF, Leonardo. A cruz nossa de cada dia: fonte de vida e de ressureição. Campinas: Verus, 2003.
PAGOLA, José Antonio. Jesus: aproximação histórica 7ª.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
PROENÇA, Wander de Lara. Cruz e ressurreição: a identidade de Jesus para nossos dias. Londrina: Descoberta, 2001.
ROHOR, Richard. The Universal Christ. How a forgotten reality can change everything we see, hope for, and believe. New York: Convergent Books, 2019.
TASKER, R. V. G. Mateus: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2006.
ZABATIERO, Júlio P. T. Mantovani. Teologia da cruz. In: Teologia e Sociedade, vol. 1, nº 13 (2019), pp. 126-137.
Sobre a autora
Mariana E. Schietti é Doutoranda em Teologia pela PUC-PR; Mestre em Teologia pela PUC-PR; Bacharel em Teologia e em Direito; Tutora na Faculdade Teológica Sul Americana.
Contato com a autora: ma**************@ft**.br