O sentido da vida no cenário da interioridade | Por Alan Brizotti

Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me e conhece os meus pensamentos. (Sl 139:23)

Introdução

No magistral Salmo 139, Davi pontua algo que é próprio da dinâmica mais profunda daquele que ora: “(…) conheces de longe o meu pensamento”. É ali, no emaranhado da mente, nesse lugar tão íntimo, que são travadas as mais densas batalhas. De todos os olhares que lançamos na vida – ou para a vida –, o mais desafiador é o olhar para dentro. É um olhar que exige.

Na conversa com Deus, no já citado Salmo, a percepção do ato divino de sondar, da relação profunda entre o sagrado e a intimidade humana, gerou em Davi uma produção poética intensa e significativa. Mas nem todos reagem como Davi. Alguns frustram-se, revoltam-se, agonizam. Olhar para dentro pode produzir o abraço ou o desespero.

Para falar de dentro, da mente, recorremos a diversas figuras de linguagem: podemos usar as tempestades da mente, as turbulências da alma, as erupções da interioridade ou, ainda, imagens mais brandas, como a calmaria de uma noite tranquila, sobretudo quando buscamos significar ou ressignificar. Na ânsia dos significados, muitas vezes, somos (s)alvos[1] da metáfora.

Há dias em que o sentimento é o de navegar em tempestades. A mente se revolta, sofremos sob a dificuldade de enxergar algum horizonte, mas seguimos na luta. Por outro lado, há dias em que parece haver um recesso mental. Um estranho descanso na loucura. São os dias mais perigosos, pois podem esconder sob o manto macio da calma, a próxima crise. Um provérbio colombiano pondera: “Livra-me, Senhor, das águas mansas” (Traumann, 2018, p. 72).

[1] Gosto de utilizar esse recurso: colocar algumas letras, ou mesmo sílabas, entre parêntesis, para “brincar” com a amplitude de significado de alguns vocábulos. É uma “mania semântica” que tenho. Nesse caso específico, a letra “s” entre parêntesis leva-nos à reflexão se somos salvos da metáfora (ou por ela) ou se somos apenas alvos dela.

 

1. A multiplicidade que se encontra “lá dentro”

Fernando Pessoa deu-nos uma estranha definição da multiplicidade interior: “Minha alma é um manicômio de caricaturas” (Pessoa, 2018, p. 242). O excesso, o ruído, a confusão, fazem parte desse tecido complexo do íntimo. A interioridade, vista como lócus dos desejos, delírios e projeções, é um vasto campo de investigação e sondagem. Esse “lá dentro” é uma floresta de ramificações e autorreferências, um constante convite ao prazer e ao perigo de se embrenhar em sua densidade.

Um questionamento intenso se apresenta sempre que refletimos sobre a busca de sentido: devo olhar para dentro ou para fora? A busca deve compreender esse “ou” ao invés de um “e”? Para dentro “e” para fora? A própria busca já é parte do sentido? Quanto mais nos aprofundarmos nessa temática, mais a multiplicidade se estabelece: o universo da intimidade é quântico, misterioso. Aqui residem suas belezas, surpresas e tristezas.

O mergulho na interioridade é característica distintiva do humano, demasiado humano, como apontava Nietzsche. As leituras de dentro, suas implicações e sugestionamentos, acabam sempre por nos colocar em estado de alerta. Vasculhar o complexo baú da intimidade é uma atividade que pode nos levar a outras perspectivas provocantes: pode re-velar (fechar ainda mais aquilo que poderia ser exposto).

O problema é que vivemos numa sociedade da exposição constante, do mercado, da transparência (Byung-Chul Han, 2017). Essa vida na vitrine costuma servir como fuga da experiência conflitante do olhar para dentro. Mostra-se violentamente, explicitamente, para evitar que alguém queira olhar o que se esconde nas camadas mais discretas da interioridade. É o paradoxo da exposição: mostrar para esconder. Essa violência simbólica se estabelece nas fúrias do cotidiano, nas relações estremecidas ou exageradamente virtualizadas. Olhar para dentro é mais do que uma busca, é o duplo senti(r)do que se apresenta sempre que “fechamos a porta” (Mt 6:6).

 

2. O inquietante olhar da procura

Alguém disse que a única doença que todo aquele que pega tem certeza de que vai morrer é a vida! Dessa ninguém escapa com vida! G. K. Chesterton, escritor inglês (1874-1936), dizia que o homem está perdendo o respeito pelo sagrado da vida, o caráter sagrado das coisas simples. O homem aprendeu como construir parques de diversão, mas esqueceu como se brinca.

Vivemos numa era que perdeu o encanto: a vida se tornou escrava do imperativo da urgência: compre, gaste, consuma! A lógica consumista é: “Compro, logo existo”. O profeta Amós (765 a.C.) nos apresenta outro imperativo, o do sagrado: “Buscai-me e vivei” (Amós 5:4). É o inquietante olhar da procura: por sentido, por propósito, por significado.

Uma das maiores angústias da humanidade é o vazio, a busca incessante, mas sem horizonte. Alguém pichou num muro em São Paulo: “Felicidade é pouco; o que eu quero ainda não tem nome”. Essa busca é tão intensa que muitos gastam a vida inteira sem amar nada! Os temas da angústia, da construção de significados na teia da vida, das relações com o próprio corpo e até mesmo dos fragmentos da identidade, são incessantemente estudados, discutidos e investigados pelos diversos campos do saber, em especial, a psicanálise.

Na psicanálise, essa busca é racional, trabalhada dentro do contexto da fala, da exposição, da interação, da conversa. O pensamento psicanalítico compreende como fuga da realidade o olhar religioso, as tentativas de explicação teológica da vida. Teóricos como Sigmund Freud, Carl Gustav Jung, Jacques Lacan, não fugiram das questões sobre o vazio, a felicidade e a busca de sentido. Em seu livro, O mal-estar na civilização (1930), Freud refletiu um pouco sobre a questão central do sentido da vida, colocando que essa busca no homem se resume a um objetivo comum: a busca do prazer, da felicidade.

O pensamento psicanalítico não evita a complexidade da mente humana, muito pelo contrário, abraça e aprofunda a investigação dos vínculos, sobretudo quando adentra as questões mais agudas da sexualidade, dos instintos, das pulsões, do emaranhado de contradições e significados que moldam e caracterizam nossa estrutura psíquica. O olhar psicanalítico analisa, por exemplo, aquilo que chamamos de “medo da morte”, pois entende esse medo como algo natural a ser tratado de forma racional, uma vez que, no entendimento psicanalítico, esse medo da morte é parte da condição humana, cuja matéria não é eterna.

O problema de uma visão puramente racionalista da busca de sentido é que ela esbarra numa palavra que o humano conhece bem: limite. Santo Agostinho dizia que “os próprios limites da nossa razão tornam a fé uma necessidade”. O já citado profeta Amós garante o melhor dos resultados dessa busca, desse olhar inquietante que não descansa enquanto não percebe seu alvo: “Buscai-me e vivei” (Amós 5:4). Vive melhor quem busca direito! Mais importante do que buscar é saber o que se busca!

 

3. Sentir(r)do a vida e a dor

Um dos grandes pensadores sobre a questão do sentido da vida, na perspectiva de quem olha para dentro, sem dúvidas, foi Viktor E. Frankl (1905-1997). Frankl foi professor de Neurologia e Psiquiatria na Universidade de Viena, bem como professor de Logoterapia na Universidade Internacional da Califórnia. Ele foi o fundador da Logoterapia[2], a conhecida “Terceira Escola Vienense de Psicoterapia” (Sigmund Freud e a Psicanálise são a primeira escola; Alfred Adler e a Psicologia Individual, são a segunda).

Frankl foi um sobrevivente de vários campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, Theresienstadt, Auschwitz, Kaufering e Turkheim. Suas reflexões e o profundo mergulho analítico que fez durante seu cativeiro, foram as bases de seu mais famoso livro: Em busca de sentido, publicado pela primeira vez em 1946. Gordon W. Allport, em seu prefácio à edição norte-americana de 1984, do livro Em busca de sentido, diz sobre Frankl: “Ao contrário de muitos existencialistas europeus, Frankl não é nem pessimista nem antirreligioso”.

Obrigado a viver no epicentro da dor, exposto à morte tão flagrantemente próxima que parecia tornar-se até banal, Frankl compreendeu que a única coisa que tinha realmente a perder era a sua existência tão “ridiculamente nua”. Em junho de 1983, na Alemanha, Frankl deu uma palestra como presidente honorário do Terceiro Congresso Mundial de Logoterapia, no Auditorium Maximum da Universidade de Regensburg, cujo tema foi “A tese do otimismo trágico”. Na palestra, que posteriormente virou um pós-escrito na edição de 1984 do Em busca de sentido, Frankl trabalhou a ideia de como é possível “dizer sim à vida apesar de todos os aspectos trágicos da existência humana. Espera-se que um certo ‘otimismo’ com relação ao nosso futuro possa fluir das lições retiradas do nosso ‘trágico’ passado” (Frankl, 2019, p. 11).

A dor é um dos grandes motores da reflexão sobre o sentido da vida. Muitos escritores já se debruçaram sobre a sua realidade, seja como quem pensa o assunto, ou como quem sente suas garras, a verdade da dor é a linguagem universal. A lágrima não precisa de tradução. Franz Kafka, Dostoiévski, Cioran, Nietzche, C. S. Lewis, Philip Yancey, dentre outros, são exemplos do quanto os gemidos incomodam, mas geram. A literatura, a arte, sempre tiveram sua lente, seu foco, voltado para os retorcidos.

Em João 14:16, Jesus disse aos discípulos que rogaria ao Pai por outro Consolador. A expressão “Consolador” é profunda, honesta e reveladora: só há consolo para quem perdeu. A fala de Jesus expõe a dinâmica das nossas lutas no caminho da vida: perdas, buscas e frustrações – o campo de atuação do Consolador. A promessa de Jesus não exclui a dor, nem a “sacraliza”, ao contrário, a amplia, redime e ressignifica. A relação com a dor e com o sentido maior de todos os percalços e sucessivos tropeços, já não é um angustiante mergulho no nada, mas sim, um profundo encontro com a graça que liberta, transforma e dimensiona.

Olhar para dentro não é um passeio no parque, é um mergulho radical nas fúrias da interioridade. São questões que sempre se apresentam e brincam perigosamente nos emaranhados de dentro. Machado de Assis, em seu magnífico Memórias póstumas de Brás Cubas, mostrou-nos um relance desse olhar que acontece nas dimensões mais discretas da nossa intimidade:

Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te. (Faoro, 1974)

As teias dessa investigação sempre estarão a nos envolver. Nós, pesquisadores, pensadores, curiosos, insistimos em refletir sobre elas não para controlar ou entender, mas para seguir participando do mistério. A mente humana ainda tem seus segredos, suas tramas, pontos de tensão. Muitos pensadores continuarão perseguindo significados e trabalhando a arqueologia da mente, suas escavações trarão sempre essa mistura de euforia a cada passo que avançamos, e frustração a cada retrocesso. É a dinâmica da vida, a nossa travessura em espiar pelo buraco da fechadura da alma.

No Salmo 139:24, Davi faz um pedido que costumo repetir, uma oração intrigante: “Vê se há em mim algum caminho mau e guia-me pelo caminho eterno”.

[2] A Logoterapia concentra-se no sentido da existência humana, bem como na busca da pessoa por esse sentido. Para a Logoterapia, a busca de sentido na vida da pessoa é a primordial força motivadora do ser humano. A Logoterapia trabalha a vontade de sentido, em contraste com o princípio do prazer, da psicanálise de Freud, bem como também em contraste com a vontade de poder, enfatizada pela psicologia adleriana.

 

Referências bibliográficas

BÍBLIA Brasileira de Estudo. São Paulo: Hagnos, 2016.
BRIZOTTI, Alan. Quando a vida dói: reflexões bíblicas para tratar as dores da alma. Goiânia: Estação da Fé, 2013.
CHESTERTON, G. K. Tremendas trivialidades. Campinas, SP: Ecclesiae, 2012.
FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974.
FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
PESSOA, Fernando. O livro do desassossego. Londrina, PR: Editora Principís, 2018.
TRAUMANN, Andrew. Os colombianos. São Paulo: Contexto, 2018.

 

Sobre o autor
Alan Brizotti
é teólogo e psicanalista. Escritor com 20 livros publicados, dentre eles: Quando a vida dói, em sua 7ª edição. Fundador da Escola Líder Mais, uma escola on-line de liderança: www.escolalidermais.com.br

Contato com o autor: al**********@ho*****.com