Uma pastoral da narratividade | Por Cezar Flora

Em sua análise da sociedade contemporânea, Byung-Chul Han chama atenção para a necessidade da narratividade da vida como contraponto à crescente aceleração que tem ditado o ritmo e se imposto sobre a vida. Para Han é a narratividade que torna possível falar sobre sentido. Assim, falta de narratividade implica em falta de sentido. Pensando nesta relação, buscaremos explorar um dos caminhos missionais possíveis para a igreja frente ao desafio colocado pela falta de narratividade. Deste modo, nos propomos refletir sobre a possibilidade de uma pastoral da narratividade, pontuando seu lugar, suas formas e seus limites.

1. Quando falta narratividade aos movimentos da vida

A transparência figura entre as palavras de ordem para as questões públicas, uma forma de conduta que, com a liberdade da informação, tem mostrado efeitos na luta contra a corrupção. Com o advento da era digital a luta contra a corrupção ganhou um poderoso aliado. A capacidade crescente de processamento de informações tem possibilitado o cruzamento cada vez mais eficaz de uma massa crescente de informações produzida diariamente a partir de cada ação realizada pelos agentes públicos. A transparência já não é mais uma opção, mas uma exigência. Assim, todas as instâncias governamentais devem expor suas informações ao alcance de todos, uma exposição capaz de trazer à tona os desvios.

Byung-Chul Han, em seu livro Sociedade da transparência (2017), aponta para uma possibilidade extrema: quando o paradigma da transparência sai de seus limites legítimos e se torna um tema totalizante para a vida. Neste momento, exposição e evidência apresentam-se como novas palavras de ordem. Mas trata-se de uma transparência que esconde uma armadilha para a vida, pois seu objetivo também se torna outro ao configurar-se como uma transparência que visa eliminar toda a negatividade que atrapalhe o “círculo veloz do capital” (p. 15). As coisas se tornam rasas e planas, as ações, operacionais, o tempo, sem destino e evento, as imagens, sem profundidade hermenêutica, enfim, o ser humano é nivelado a um “elemento funcional de um sistema” (p. 24).

            Hiperatividade, hiperprodução e hipercomunicação caracterizam este sistema imposto à vida. O “hiper” indica uma aceleração de movimento, mas uma aceleração que se dá no vácuo, um puro movimento sem direção que se acelera por si mesmo. Não há um direcionamento que guie esta movimentação agitada, um desajuste do princípio de funcionamento do sistema leva a uma pura exacerbação do jogo. “Ir além da meta”, eis um dos motes que caracterizam a sociedade do desempenho. A transparência planificadora denunciada por Han planifica a vida a este hipermovimento sem direção. A velocidade do movimento puro totaliza-se sobre a vida, impondo os critérios de ajuste e funcionamento.

Sem um sentido o corpo social perde a referência de seus processos e movimentos. Os movimentos excessivos, que se proliferam de forma massiva são possíveis somente na ausência de um sentido – tornam-se movimentos obscenos. Quando o corpo social perde sua referência ao mesmo tempo se priva de toda a narratividade, de todo direcionamento e de todo sentido. Neste momento a narração dá lugar à adição.

A adição é mais transparente do que a narração. Só se pode acelerar um processo que é aditivo, e não um processo que é narrativo. Totalmente transparente é apenas a operação de um processador, porque seu curso é meramente aditivo (Han, 2017, p. 70).

Enquanto um sentido requer narratividade, a mera adição não narra, apenas processa informações. A falta de narratividade possibilita que tudo se torne operacionalizável, pois elimina aquilo que pode se colocar como impeditivo ao processo de aceleração e circulação. Frente à esta crescente aceleração, Han afirma que uma possível saída não seria uma mera desaceleração, pois o problema não é a aceleração em si, mas, sim, a falta de história/narrativa. Sobre o papel da narratividade:

A narração exerce uma seleção; o curso narrativo é estreito, só admite determinados acontecimentos. É por isso que ele impede a proliferação e a massificação do positivo. O excesso de positividade que hoje domina a sociedade é um indicativo de que esta foi privada de sua narratividade. (Han, 2017, p. 75)

A narrativa traz ritmo, cadência, resistência, enfim, dá sentido. Por não ser aditiva, ela seleciona (não sucumbe ao excesso), ela compõe uma trama – a narrativa traz significado. Se a pura aceleração no vácuo não gera sentido podemos dizer que falar sobre o sentido da vida só é possível quando há narrativa. Isto posto, aqui se nos mostra o ponto a partir do qual podemos refletir sobre um dos possíveis caminhos missionais da igreja frente à transparência planificadora de nosso tempo.

2. Quais histórias ainda podemos contar?

Pensando nas possibilidades missionais que a narratividade oferece à igreja, comecemos com uma reflexão sobre a natureza das histórias que podemos contar hoje. Creio que esta atuação missional da igreja se constitua em uma via intermediária situada entre as grandes narrativas e as narrativas centradas exclusivamente no indivíduo. Para uma melhor compreensão, caracterizemos as possibilidades indicadas.

Em primeiro lugar, as grandes narrativas. Enquanto possibilidade própria de uma sociedade tradicional, a Igreja Católica forneceu uma grande narrativa legitimadora dos movimentos, processos e estruturas da vida medieval. Porém, com o advento da modernidade este papel foi colocado em questão, pois surgiram novos discursos concorrentes. Não mais discursos teológicos, mas filosófico-metafísicos. Não se tratava do fim de grandes narrativas, mas, em certo sentido, da secularização das grandes narrativas legitimadoras, agora em torno de novos temas. Com o estabelecimento de novas narrativas instituem-se, consequentemente, novos sentidos.

Em A condição pós-moderna (2009), Lyotard pontua o caráter narrativo dos novos discursos de legitimação que surgem neste período. Um período de novas reflexões sobre o lugar do ser humano, de suas possibilidades, de suas instituições, de seu fazer científico, e assim por diante. Porém, estes novos discursos filosófico-metafísicos também entraram em crise. E, para Lyotard, uma das características marcantes da pós-modernidade é a crise dos grandes relatos, ou da possibilidade de propô-los: “o pós-moderno, enquanto condição da cultura nesta era, caracteriza-se exatamente pela incredulidade perante o metadiscurso filosófico-metafísico, com suas pretensões atemporais e universalizantes” (Idem, p. viii).

Em segundo lugar, as narrativas individuais. Anthony Giddens, em seu livro Modernidade e Identidade (2002), investiga as implicações do nosso tempo em relação à identidade individual. Segundo ele, o distintivo deste tempo não é a mera ênfase no indivíduo, pois, de certa forma a individualidade tem sido enfatizada em todas as culturas (p. 74). O distintivo se dá na forma como se configura atualmente, ou seja, como ela se configura em um pano de fundo “pós-tradicional, organizado reflexivamente, permeado por sistemas abstratos” (p. 78).

A fim de assinalar estas implicações, no terceiro capítulo, intitulado “A trajetória do eu”, Giddens faz uma análise de uma corrente literária que ganhou destaque em nosso tempo: a autoterapia. Frente a não predeterminação da vida (característica das sociedades tradicionais) instala-se uma nova forma de o indivíduo lidar com suas escolhas pessoais, uma forma que requer uma constante reflexividade do eu. Mas, mesmo aqui ainda há espaço para a narratividade:

Fica claro que a auto-identidade, como fenômeno coerente, supõe uma narrativa – a narrativa do eu é explicitada. Manter um diário e trabalhar numa autobiografia são recomendações fundamentais para sustentar um sentido integrado do eu. […] Como qualquer outra narrativa formalizada, ela é algo que deve ser trabalhado, e certamente demanda esforço criativo. (Giddens, 2002, p. 75, itálico nosso)

Aqui não se trata mais da proposição de uma grande narrativa, pois “a linha de desenvolvimento do eu é internamente referida” (p. 76). Os pontos de referência agora são colocados “a partir de dentro”, vinculados à forma como o indivíduo constrói/reconstrói a história da sua vida.

Esta simples caracterização nos proporciona o pano de fundo a partir do qual gostaríamos de pensar as possibilidades missionais da igreja: por um lado, a crise das grandes narrativas, e por outro, a crescente centralização em uma narrativa individual. Creio que estas são algumas das características que precisam ser levadas em consideração para pensarmos as possibilidades missionais abertas à igreja através do uso das narrativas.

3. Narrativas missionais

O caminho missional a ser aqui pontuado começa com uma reflexão a respeito do lugar e da função das narrativas na vida comunitária da igreja. Eugene Peterson, com seu livro Memórias de um pastor (2011), se coloca como um parceiro em nossa caminhada ao chamar atenção para as possibilidades pastorais da narrativa. Enquanto trabalhava na fundação de uma congregação em Baltimore, EUA, Peterson percebeu que a igreja é um lugar de histórias, uma percepção que o levou a reimaginar o significado de ser igreja. A partir dessa percepção ele iniciou uma série de sermões a partir do livro de Atos, um livro que nos conta a narrativa da igreja nascente. Entretanto, ele não se propôs a tomar o livro como “um manual com diagramas e um conjunto de instruções sobre como ser igreja”, mas explorar uma outra possibilidade.

Uma história não é um script a ser copiado. Uma história desenvolve uma percepção de narrativa em nós, de modo que nós, atentos à história de Jesus, sejamos presentes, obedientes e crentes à medida que participamos dos modos pelos quais o Espírito Santo está formando a vida de Jesus em nós. A trama (Jesus) é a mesma. Contudo, os lugares, as circunstâncias e os nomes reais serão diferentes, formando uma narrativa exclusiva para a nossa época, lugar, circunstâncias e pessoas. (Peterson, 2011, p. 134)

A partir desses indicativos de Peterson gostaria de pensar quatro coisas sobre o uso missional das narrativas por parte da igreja. Em primeiro lugar, trata-se de uma referência narrativa não centrada exclusivamente na narrativa individual. Quando o peso recai sobre o indivíduo, toda a responsabilidade sobre a vida é a ele transferida. E, frente a aceleração constante de nosso tempo, a vida sucumbe à lógica do desempenho. Uma narratividade que não toma a história como um script a ser copiado deixa aberta a possibilidade para se pensar a narrativa individual, mas desloca seu centro para a trama-Cristo, conduzindo a uma narratividade que passe também pela vida comunitária.

Em segundo lugar, a narratividade da vida à luz do evangelho não significa uma repetição. O sentido narrativo não se dá pela repetição do enredo, mas pelas possibilidades abertas pelo sentido da trama (história de Jesus). Deste modo, o sentido não se congela em uma repetição cega, mas em uma exploração criativa do sentido através da atuação do Espírito.

Em terceiro lugar, uma história que se dá em diálogo com os desafios de seu tempo. A percepção narrativa se faz acompanhar de uma sensibilidade contextual. Este aspecto também é fundamental para a atualidade do sentido da narrativa do evangelho ao longo do tempo, uma contextualização do sentido aberta às novas configurações contextuais que se dão ao longo da história. Embora haja um “fim” proposto ao enredo, a história atualiza-se frequentemente frente às mudanças que se colocam ao desenvolvimento do enredo.

Em quarto lugar, essas narrativas sempre terão um caráter testemunhal. Neste sentido, retomo aqui a imagem proposta por Walter Brueggemann para pensar o testemunho de Israel a respeito de Deus: a metáfora do tribunal. Diante de um tribunal as testemunhas são chamadas a dar a sua versão da realidade, uma situação em que o discurso é tudo. Todavia, o discurso é marcado pela fragilidade, isto é, o testemunho sempre se dará a partir de uma posição de vulnerabilidade.

No entanto, essa vulnerabilidade não é evidência contra a sua veracidade. O testemunho não é reducionista nem coercitivo. É oferecido em toda a sua densidade e caráter elusivo e, então, as testemunhas aguardam a decisão do tribunal, enquanto outros testemunhos são prestados por outras testemunhas a favor de outros deuses. A espera é longa e desconcertante, porque as testemunhas a favor dos outros deuses às vezes são formidáveis. E o júri só chega à conclusão vagarosamente, pouco a pouco. (Brueggemann, 2014, p. 968)

Apontamentos finais

            Frente à uma transparência planificadora, que visa eliminar toda negatividade que atrapalhe o “círculo veloz do capital”, Byung-Chul Han aponta para a necessidade de se atentar para a narratividade necessária à vida. Neste sentido, pensando na atuação missional da igreja, talvez possamos falar de uma pastoral da narratividade. O texto bíblico é repleto de histórias, bem antes das proposições sistemáticas e filosóficas. Se através da narrativa torna-se possível falar de sentido, então a narratividade do evangelho também pode se apresentar como um enredo formidável para o sentido da vida frente às outras inúmeras testemunhas que se apresentam diante do tribunal do júri.

Porém, é mister que a igreja se atente tanto para o papel missional da narratividade do evangelho quanto para a natureza testemunhal dessas narrativas, conforme pontuadas no terceiro tópico. Se com o fim dos grandes relatos assistimos a uma multiplicação crescente de novas possibilidades narrativas, neste cenário a tentação da igreja pode ser desejar impor a sua narrativa como discurso totalizante sobre todas os demais discursos, esquecendo-se de sua fragilidade e da vulnerabilidade de suas testemunhas. Ou, quem sabe, esquecer-se que “as testemunhas a favor dos outros deuses às vezes são formidáveis” (Brueggemann, 2014, p. 968).

Sobre o autor
Cezar Flora
é Mestrando em Filosofia pela UEL; Graduado em Teologia e Filosofia; Professor da Faculdade Teológica Sul Americana.
Contato com o autor: ce*********@te******.br

 

Referências bibliográficas
BRUEGGEMANN, Walter. Teologia do Antigo Testamento. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2014
HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2017
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002
LYOTARD, François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2009
PETERSON, Eugene H. Memórias de um pastor. São Paulo: Mundo Cristão, 2011