18 maio A Igreja Missional | Por Jorge Henrique Barro
Uma igreja missional é definida como uma comunidade que está em busca constante de envolvimento com a missão de Deus no mundo. O povo de Deus é visto como enviado em missão, enquanto nos modelos tradicionais os enviados são os(as) missionários(as) pagos(as), por vezes chamados de profissionais. Na igreja missional todos se percebem como participantes desse chamado. A missão é de Deus. A igreja é criada para ser um sinal e instrumento de Deus em favor do mundo. Essa atividade de Deus no mundo diz respeito tanto a restauração das pessoas para com Ele, como das pessoas com outras pessoas e ainda das pessoas com toda a criação.
No modelo tradicional de igreja ela envia missionários, enquanto no modelo da igreja missional ela mesma é enviada. Não pensa tanto em destino, mas em uma jornada. Lois Y. Barret, ministra ordenada da Igreja Menonita dos USA, diz:
A igreja missional é uma igreja que é moldada para participar na missão de Deus, que se organiza para restaurar o mundo quebrado e pecaminoso, para resgatá-lo e redimi-lo para Deus… Igrejas missionais percebem a si mesmas não tanto como enviadoras, mas como sendo [elas mesmas] enviadas. Uma congregação missional permite que a missão de Deus permeie tudo o que ela faz – da adoração ao testemunho, formando membros para o discipulado. Ela preenche a lacuna entre o alcance [para fora] e a vida congregacional [para dentro], já que, em sua vida comunitária, a igreja encarna a missão de Deus. (Barret, 2004, p. x)
Vamos expandir essa definição. Note três aspectos importantes:
- Deus como sujeito da ação
A igreja missional é uma igreja que é moldada para participar na missão de Deus, que se organiza para restaurar o mundo quebrado e pecaminoso, para resgatá-lo e redimi-lo para Deus.
O sujeito da missão não é a igreja, mas Deus. Deus tem uma missão, na qual a Igreja participa e jamais o contrário. A localização da missão de Deus não é principalmente a Igreja, mas o mundo. Deus é ativo no mundo que Ele mesmo criou, redimindo-o e sustendo-o. A igreja tem uma vocação para participar da atividade de Deus, em nome de toda a criação. Isso está em contraste com a igreja como o sujeito ativo da missão. É a igreja que tem a missão de levar Deus ao mundo? Ou é Deus que já atua no mundo e na vida individual das pessoas? Deus já está atuando no mundo, e somos convidados/as a nos unir a Ele naquilo que Ele já está fazendo. Deus está sempre atuando, não apenas no mundo, mas na vida das pessoas de modo individual. Deus se preocupa com a vida humana em toda a sua complexidade.
Muita teoria? Não entendeu? Por exemplo, quando uma criança está se esforçando para aprender a ler, porque ela tem dislexia, Deus se preocupa com seu aprendizado para que ela possa ter vida em plenitude. Deus está com ela em sua luta. Se você fosse o/a tutor/a desta criança com dislexia, estaria participando daquilo que Deus estaria fazendo na vida dela. Se você fosse o/a tutor/a dela seria porque o amor de Deus o/a levou a fazê-lo, e seu trabalho seria uma expressão viva de que Deus está com essa criança e se preocupa com ela. Entendeu?
Assim, o conceito é:
A missão de Deus é restaurar a totalidade da criação. A igreja participa como sinal e instrumento da missão de Deus.
Por outro lado, o conceito não é:
A missão da Igreja é levar o amor de Deus ao mundo. Deus ajuda a igreja a viver a sua missão.
Isto pode soar um tanto quanto semântico ou mera troca de palavras, mas essa distinção é fundamental. Significa que o que fazemos dentro das paredes da igreja não é a totalidade da obra de Deus, mas sim o preparo do povo de Deus para a obra d´Ele no mundo. É uma questão de mudança de foco, do institucional ou de sobrevivência, para olhar a atividade de Deus dentro e fora de nossos muros institucionais. Ela muda o nosso foco não apenas ao perguntar como podemos restaurar as pessoas para Ele através dos ministérios oferecidos nas instalações da igreja, mas também para o que Deus já está fazendo em nossa comunidade e como podemos ser parte disso.
Uma forma de articular que Deus é o sujeito ativo da missão é por meio do termo missio Dei. Esta frase em latim aparece muitas vezes na literatura missional. É traduzida como missão de Deus. Deus criou o mundo, de modo que toda a criação pudesse experimentar plenitude de relacionamento com Ele. O pecado entrou no mundo e, com ele, também a corrupção individual e coletiva (em outras palavras, nós pecamos como pessoas individuais, e quando nos organizamos em grupos e sociedades, uma sinergia de pecado entra em vigor). O Deus-Pai enviou Jesus ao mundo para resgatá-lo. Jesus veio anunciar o reino de Deus (ou o que muitos chamam de o reinado redentor de Deus).
Como o Pai enviou o Filho, o Filho enviou o Espírito para o mundo. O Espírito criou a igreja e a envia ao mundo como participante com Deus na redenção de toda a criação. A igreja existe para proclamar e manifestar o Reino de Deus e experimentar em sua própria vida a presença deste reino, caracterizada pela justiça, amor e misericórdia. Quando nos preocupamos com o outro, experimentamos (conscientes ou não) uma antecipação deste reino, em que o amor é a maneira de vivermos juntos. A vida congregacional interna assume um novo significado quando ela tem como foco preparar o povo de Deus para participar da atividade de Deus em favor do mundo.
Esta distinção liberta-nos de ver nossos esforços sendo canalizados para igreja-edifício, manutenção-institucional, e números-resultados. Percebe-se como movimento e não monumento. Não fica apaixonada pela numerolatria – quantas pessoas estão no edifício ou assistem aos programas. Antes, se preocupa se as pessoas estão sendo equipadas, formadas, e guiadas para participar da e na missão de Deus no mundo. Tal enfoque reconhece que a Igreja aponta para o reino de Deus. Assim, a ela não é o fim último, mas um meio para o fim, que é o reino e a glória de Deus. Em outras palavras, não estamos construindo a igreja como instituição, mas vivendo como um sinal transformador do reino de Deus.
Igrejas grandes e pequenas podem ser missionais. Não há um único modelo de ser igreja. Cada igreja vai procurar estar nessa jornada rumo a um ministério missional dentro de seu contexto, no lugar que Deus a colocou.
- Repensando a história
Igrejas missionais percebem a si mesmas não tanto como enviadoras, mas como sendo [elas mesmas] enviadas.
Esta definição também aponta para um afastamento entre a igreja, como uma agência que predominantemente envia missionários para outras partes do mundo, e aqueles/as que apenas oram e financiam os missionários. O movimento missional procura repensar o desafio de que toda a igreja é enviada, e não uns poucos. É certo que existe a necessidade de preparar pessoas para missões transculturais e isso jamais deverá deixar de ser realizado. A questão é que, na história da igreja, essa é a compreensão mais comum de missão. Missões transculturais é uma das atividades da igreja missional e não a atividade. A igreja missional vive para a missão e missões é uma das suas dimensões. Outras dimensões são o ensino, serviço, comunhão e adoração.
Quando Constantino declarou o cristianismo como sendo a religião oficial do Império Romano em 313 d.C., a igreja passou primariamente a ser um movimento missionário institucional-estatal, estabelecida e protegida pelo império. Essa constantinização da igreja, contando com a proteção e prestigio do estado, ficou conhecida como cristandade. Ou seja, uma adesão cultural. Dai surge o nominalismo – cristão de nome culturalmente identificado em uma tradição/denominação. Agora, em vez de discípulos, os cristãos são membros de igreja. Essa membresia constrói um corpo estático que perde seu caráter de peregrino. O dinamismo missional – “e sereis minhas testemunhas tanto em” (At 1.8) – é sufocado pelo clericalismo-institucionalismo. Conclusão: igreja torna-se um lugar (prédio) aonde as pessoas vão e não o que as pessoas são. Contrariamente, pode-se dizer: Eu não vou à igreja, mas sou a igreja!
Essa situação exige uma resposta de luto que aceita a desestabilização por amor a Deus, seu reino e sua missão. Quem não existe para a missão existirá para a manutenção. Faz-se necessário abraçar essa mudança, caso contrário, esse sal da terra que somos, não “servirá para nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens” (Mt 5.13). O caminho de Jesus nunca foi o de manutenção do status quo, antes conduziu seu ministério a partir das margens (Galileia) em vez de um lugar de poder privilegiado (Jerusalém).
- Missão como a natureza essencial da Igreja
Uma congregação missional permite que a missão de Deus permeie tudo o que ela faz – da adoração ao testemunho, formando membros para o discipulado. Ela preenche a lacuna entre o alcance [para fora] e a vida congregacional [para dentro], já que, em sua vida comunitária, a igreja encarna a missão de Deus.
Missão não é uma função da igreja, mas seu propósito de existir. Missão como apenas uma função pode ser vista na maneira como muitas igrejas têm um departamento de missão, que normalmente supervisiona o dinheiro e missionários/as enviados/as para terras estrangeiras. Missão não se trata de departamento, mas de sua essência e a igreja não existe para outra finalidade. Ela é povo missional de Deus onde todos são preparados e equipados para participar na missão de Deus no mundo.
Culto, governo (o trabalho do conselho da igreja) e a formação espiritual de adultos e crianças (discipulado) tomam um novo significado. Estes aspectos da vida comunitária da igreja nunca deixarão de existir e, na verdade, se tornam ainda mais importantes. Nós nos reunimos em adoração, classes, pequenos grupos para desenvolver a nossa própria fé, discernir a nossa vocação, e planejar juntos como vamos viver nosso chamado em nossa comunidade e em nossas esferas de influência. O governo da igreja está principalmente perguntando como a congregação pode viver o seu propósito no ritmo da comunhão e do envio. Isso altera as conversas que temos ao redor das reuniões. Ao invés de apenas perguntar: “O orçamento está equilibrado?” Passamos a perguntar: “Esse orçamento reflete nosso propósito como uma igreja missional?”
A igreja missional é aquela que vive como um sinal da presença de Deus no mundo através de todas as suas atividades internas e externas. As atividades e práticas internas, tais como adoração, estudo da Bíblia, ministérios com as crianças/jovens, o cuidado um do outro, assumem um significado mais profundo. O foco dessas atividades internas está em ajudar as pessoas a desenvolverem sua fé e identificarem sua vocação/dom para o serviço. Um serviço que é vivido em ministérios nas instalações da igreja e mais além.
Na igreja missional, o papel dos pastores é “preparar os santos para a obra do ministério” (Ef 4.12). Trata-se do ministério comum a todos. Qual? “Tudo isso provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação” (2Co 5.18). Todo discípulo tem esse ministério – o ministério da reconciliação – das pessoas para com Deus, com elas mesmas e com a criação. Quem prepara os santos (discípulos) para essa obra? Pastores e mestres! É claro que você, como discípulo maduro de Jesus, pode e deve buscar essa preparação, mas os pastores e mestres não podem se esquecer dessa tarefa, porque “todo o corpo, ajustado e unido pelo auxílio de todas as juntas, cresce e edifica-se a si mesmo em amor, na medida em que cada parte realiza a sua função” (Ef 4.16). A tarefa prioritária de um pastor é mobilizar, capacitar e supervisionar o povo de Deus para que seja um povo missional.
As três definições de igreja missional a seguir nos ajudam muito a compreender também nossa tarefa como agentes missionais do reino de Deus:
Precisamos entender que missão não é apenas uma atividade da igreja. Em vez disso, a missão é o resultado da iniciativa de Deus, enraizada nos propósitos de Deus para restaurar e curar a criação. “Missão” significa “envio”, e esse tema central da Bíblia descreve a finalidade da ação de Deus na história humana… Nós aprendemos a falar de Deus como um “Deus missionário”. Assim aprendemos a compreender a igreja como “pessoas enviadas”. “Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio ao mundo” (Jo 20.21). (Guder, 2998, p. 4)
Temos que distinguir entre missão (singular) e missões (plural). O primeiro refere-se principalmente à missio Dei (missão de Deus), isto é, a auto-revelação de Deus como Aquele que ama o mundo, o envolvimento de Deus no e com o mundo, a natureza e atividade de Deus, que abrange tanto a Igreja como o mundo, e em que a igreja tem o privilégio de participar. Missio Dei enuncia a boa notícia de que Deus é um Deus-para-pessoas. Missões (empreendimentos missionários da igreja) se referem a formas particulares, relacionadas com horários específicos, lugares ou necessidades, de participação na missio Dei. (Bosch, 1991, p. 10)
A igreja, como o povo de Deus no mundo, é inerentemente uma igreja missionária. É a participação plena na obra redentora do Filho enquanto o Espírito cria, guia e ensina a Igreja a viver como as pessoas distintas de Deus. Com esse entendimento, a missão deixa de ser uma função da igreja para descrever sua natureza essencial… (Van Gelder, 2000, p. 31)
Conclusão
Então, você tem uma missão para Deus no mundo? Não, o contrário: Deus é quem tem uma missão para com o mundo e quer realizá-la através de você e sua igreja. Se queremos colocar de forma positiva, nossa missão é cumprir a missão de Deus no mundo. Lembre-se: igreja não é aonde você vai; igreja é o que você é: “vós sois…” Lembre-se mais: você já está em missão. Você já foi enviado: “assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”! Você é um agente missional de Deus para a transformação das pessoas e do mundo. Sem isso, sua igreja jamais será uma igreja missional.
Para isso, é fundamental discernir o papel e a presença da liderança na igreja. Infelizmente ainda funcionamos com a mentalidade do líder burocrático, eleito para atuar na igreja. Ninguém deveria ser líder na igreja se fosse a serviço da missão de Deus. Isso passa fundamentalmente pela visão pastoral. É, sim, responsabilidade pastoral mobilizar, treinar e capacitar a liderança a partir de tal e para tal visão. Uma liderança que não está a serviço de Deus e de sua missão tende a ser causadora de problemas e dona da igreja.
Citei aqui a experiência da pastora Stephanie Lutz Allan, que afirmou que “queríamos uma igreja maior para acariciar nossos egos”. Como é fácil desviar os motivos pelos quais a igreja existe. Pensamos que estamos realizando a missão, mas estamos inflando nosso ego para termos uma igreja maior, mais vibrante, mais tudo… A grande pergunta que alguém que se converteu à perspectiva missiológica será sempre a mesma: “para quê?”. Isso mesmo: de agora em diante você sempre irá perguntar “para quê?”. Para que queremos um culto mais vibrante? Para que realizaremos um acampamento de carnaval? Para que iremos reformar a igreja? Para que criaremos uma nova programação aos jovens? Para que dizimamos? E assim por diante.
Uma igreja, um pastorado, ou uma liderança que não pergunta “para quê?”, não se converteu à missão de Deus.
Pense nisso tudo! Reflita você mesmo/a. Caso seja um/a pastor/a, o é para quê? Caso seja um/a líder, para que o é? Se sua igreja não é uma igreja missional, ela é para quê? É impossível participar da vida de Deus sem que também não participemos de sua missão!
Referências bibliográficas
BARRETT, Lois Y. (Ed.) Treasure in clay jars: patterns in missional faithfulness Grand Rapids: Eerdmans Publishing Company, 2004.
BOSCH, David J. Transforming mission: paradigm shifts in theology of mission. Maryknoll: Orbis Books, 1991.
GUDER, Darrell L. (Ed). Missional church: a vision for the sending of the church in North America. Grand Rapids: Eerdmans, 1998.
VAN GELDER, Craig. The essence of the church: a community created by the Spirit. Grand Rapids: Baker Books, 2000.
Sobre o autor
Jorge Henrique Barro é Doutor em Estudos Interculturais pelo Fuller Theological Seminary, Califórnia, EUA; co-fundador, professor e atual diretor acadêmico da Faculdade Teológica Sul Americana, em Londrina. É também pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil.
Contato com o autor:
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